20.12.23

Adoçar a literatura é um dever dos literatos

A página doze

às dezasseis e vinte e quatro minutos

as suas trezentas e quinze palavras

demoraram dois minutos e quarenta segundos

a ler.

A página treze

às dezasseis horas e quase vinte e sete minutos

as suas cento e oitenta e sete palavras

(é o fim do ensaio 

sobre a mecânica das vias ferroviárias)

demoraram um minuto e cinquenta e oito segundos

a ler.

A página sem rosto

a página sem número

que se ateiam no vazio

à espera de ficarem grávidas

do precipício;

à espera

que a deslocação do vento

tenha tinta suficiente

para escrever a página catorze

e a quinze e a dezasseis

e a dezassete

e assim sucessivamente.

#3001

O ruído a remoer 

fundo, 

no fundo

onde os bastidores 

se deslaçam.

19.12.23

Manhãs

Dei-te o nome da manhã. 

Dei-te a pele em combustão 

para seres a candeia 

que me resgatou da hibernação. 

 

Os vulcões desenhados 

na carne desembaraçada 

desmatavam o medo. 

 

Não queríamos fronteiras. 

 

Deixamos em legado 

o nome da manhã. 

 

Feito com as estrofes 

que depusemos 

a mãos juntas.

Injustiças indocumentadas (269)

Socialista.

Sucia lista.

Só lista na cia.

#3000

Não ficou para trás

o comboio impertérrito

a cavalgar 

nas lombadas prístinas

de estrofes frescamente matinais.

18.12.23

O ouro e o bandido

Um repente

um estatuário sismo

por dentro dos ossos gémeos

sem que haja estandarte por levantar

sem memória que seja para avivar

ou hino para falar:

uma encenação

ou farsa esculpida no barro comum

essa historieta vã

uns olímpicos sebastiões 

doutores em saudades do avesso

empunhando archotes 

que hibernam o presente

e devolvem trevas irremediáveis.

Nadam

para dentro de um tsunami

no logro participado de uma ilusão fátua

e todos os papelinhos estilhaçados

em fila desordenada

fazendo a vez de confettis

armadilhando o chão suado.

Injustiças indocumentadas (268)

Passaporte.

Passa porte.

Passa (o) porte.

Passa (o teu) porte.

Parte.

Injustiças indocumentadas (267)

Aceita a seita.

A seita aceita.

Aceita.

A seita.

Injustiças indocumentadas (266)

Não se brinca

com cadeiras.

 

[Prontuário do blasé]

#2999

A ponte é uma dádiva

um atalho entre duas mãos

a muralha desfeita no pó do tempo.

17.12.23

#2998

Wait

for the weight.

Weight

the wait.

A premissa do sonho

O pensamento faz barulho

onde o corpo se esconde

quando a matéria anoitece.

O pensamento faz barulho

onde se encontra com o silêncio

quando as mãos estrénuas

esconjuram as vozes fraquejadas.

Quando

esquartejada a angústia

em finas camadas de frio

amanhecem as luas antigas

sobre o pano desarrumado dos sonhos.

A bucólica boca bebe de um trago

toda a baba dos pesadelos arqueados.

Tece os socalcos que descem

até sobrarem os silêncio ungidos

por deuses demissionários.

Mas o pensamento

continua a fazer barulho

até onde é ermo o lugar.

E esse

é todo o património

da humanidade.

Injustiças indocumentadas (265)

Conversa fiada

sem uma roca

por perto.

16.12.23

Injustiças indocumentadas (264)

Primeiro,

ministro.

Segundo,

vítima.

 

[Como reabilitar uma carreira política em meia dúzia de páginas]

#2997

Este é o nosso arras:

um património de palavras

o passado que nos persegue.

15.12.23

Injustiças indocumentadas (263)

Ave

deixa a Maria

pesar

a sua graça.

Injustiças indocumentadas (262)

O mundo anda estranhamente modesto:

tem os Países Baixos

mas faltam

os países altos.

Injustiças indocumentadas (261)

Para contar as favas

é preciso um ábaco 

em forma de milagre.

Injustiças indocumentadas (260)

Quem lambe botas

fala língua de trapos.

#2996

No fundo

ao fundo

o entardecer

militante.

14.12.23

Desmontagem

Os corpos esbracejam

multidões ansiosas por um aval

os seus abusivos xailes cobrem o silêncio. 

 

Não há quem desmate a floresta sem luar

não há ninguém no arrumado altar das fugas

e os bardos já não têm repertório

vencendo, enfim, 

o silêncio. 

 

Os cálices maduros sobem às bocas. 

 

Desaprenderam a nostalgia

e agora 

saciados

compõem as fragas por se despenha o medo. 

 

Sem céu por abrir ao luar

sobra a meada de neve

o longo apeadeiro onde se consomem as almas

no vindouro espelho que espartilha o passado. 

 

O ontem 

deixou uma amálgama retorcida

nomes e lugares e rostos e casas

embaraços tenentes da matéria puída

toda uma constelação de lúgubres lugares

à espera de lugar

na sepultura.

Outono erudito

À gramática do Outono:

as folhas desmaiam

juram que voltam a ser vulcões.

Deixam nuas as árvores

remexidas pelo Inverno impetuoso.

Não há nada mais inteligente

do que o Outono.

#2995

Estas espadas castradas

o ânimo enfim

um Homem fecundo.

13.12.23

Prisoner’s dilemma

Facing authority.

 

Fencing authority.

Injustiças indocumentadas (259)

Subsídios

para o conceito

de mentira despegada:

_____________________

Injustiças indocumentadas (258)

Fugir à verdade

para 

fugir da verdade.

Para

de fugir

à verdade.

Injustiças indocumentadas (257)

Fazer face

é uma atividade

que consome muitas calorias.

#2994

O desejo 

afirma o beijo

a vontade

num lampejo.

12.12.23

Nostalgia disfarçada

Mando no precipício:

não são os avestruzes vetustos,

os cicerones dos campos minados,

deduzem

que serão maltrapilhas as cabeças

assim encestadas na toca 

onde desamanhece o lobo censitário. 

Se por precipício se entender 

a mando de uma metáfora

acendem-se as sirenes

cimentando o sonoro protesto

tirado à prova dos nove entretanto. 

Se forem contumazes

os boémios adestrados

seja dada corda à cantilena arcaica

montadas as memórias altivas

o autêntico sublinhado da melancolia. 

Não é por erro

a carta da melancolia que sobe à mesa:

podiam os desalentados do presente

abrilhantar a nostalgia

tudo o que conseguiram

foi três pétalas de melancolia

no sopé do precipício 

que tinha ares de miradouro.

 

O dia diuturno

As mãos 

tocam a carne suada, 

levam à boca 

a alvorada 

que torna o dia opulento. 

Na coreografia sem roteiro, 

os corpos ensaiam o auge. 

Agarram-se 

aos dedos máximos 

que devolvem 

a claridade anestesiada. 

Se as paredes soubessem, 

eram poetas.