18.1.24

Injustiças indocumentadas (280)

Um desdentado

não mente.

#3032

[Variante do #3031]

 

Já leste

ou estás à espera

da página do nada?  

#3031

A Leste de tudo

à espera do nada. 

17.1.24

A inveja dos deuses

As palavras doces sobem à boca. Desenham paisagens no corpo. Cuidam das cicatrizes. As palavras, murmuradas na beleza do estuário levitada pelo entardecer. E nós, emudecidos, curadores das palavras ateadas pela combustão do sangue, soletramos as sílabas do hino hasteado nas nossas mãos. E deixamos ao sol futuro os desembargos prometidos.

#3030

É muito melhor

quando os números

desembucham 

o resultado desejado.

 

(Começa-se pelo fim;

e anda-se para trás.)

16.1.24

Tinturaria

Tingido

o suor

pela mudez que não queria. 

 

Tingida 

a carne

pelas farsas que dispensa. 

 

Tingido

o luar

pelos penhores adiantados. 

 

Tingida

a boca

pelo anzol carismático que não pediu. 

 

Tingido 

o arco-íris 

pelo crepúsculo itinerante. 

 

Tingido

o ocaso

pelas horas furtadas aos relógios. 

 

Tingida

a maré

pelo areal em legado por um vulcão. 

 

Tingida

a fala

pelo silêncio impronunciável.

Injustiças indocumentadas (279)

Quando se fala

em engolir um sapo

ninguém pergunta

se o sapo quer ser comido.

#3029

As esculturas

deviam ter direito

aos direitos humanos.

15.1.24

#3028

Não insultes janeiro

se queres o julho a preceito.

14.1.24

#3027

As ruas

que suam História

mesmo quando é

inverno.

13.1.24

#3026

As marés

são congeminadas

por sereias e náufragos 

– a nova sorte 

da luta de classes.

12.1.24

By the book

By the book:

as faianças 

não se perdem

no penhor,

as mãos congeminadas

são o fogo envaidecido

a tomada de poder

contra os estetas do medo. 

 

By the book:

ainda há manhãs sortilégio

um esboço do avesso do luar

a foz que arremete

contra o estuário. 

 

By the book:

suam as palavras

vulgarmente artesanais

o campo aberto 

onde secas se perdem as alvoradas. 

 

By the book:

arrumo a moeda fraca

o porquinho-mealheiro estilhaçado

agora com a alma à mostra

enquanto no adro

as vozes loucas deitam-se nas árvores

e as horas amputam-se de mastros

os imarcescíveis ecos da rebeldia 

povoando os versos inacabados. 

 

By the book,

dizias

porque queremos corrimões

bengalas contra a penumbra

um salvo-conduto num labirinto

as modas 

que se conduzem na anuência silenciosa

um muro sem limites

um desacontecimento que conspira

e nós

sempre

by the book

desaprendemos a liberdade

contra o ónus da segurança.

Injustiças indocumentadas (278)

Estamos a salvo

do conservadorismo:

por serem um mero punhado

os adeptos do Belenenses

são escassos

os velhos do Restelo.

#3025

Não desalmes

o sangue que se desata

no nó cego da dúvida.

11.1.24

#3024

Há quem prefira

ser ogre bonito

a patinho feio.

10.1.24

#3023

Não se vê

a alma do rio,

escondida no caudal

que desenha o estuário.

9.1.24

#3022

Os dias simples

como o farol

que ajuda o navio

a destruir a escuridão.

7.1.24

#3021

Lançado 

na vertigem do carrossel

as palavras emudecidas

derrubavam o medo.

6.1.24

Injustiças indocumentadas (277)

A noz

do povo.

#3020

As mangas arregaçadas

os braços nus, à mostra

a empreitada que vem

no próximo apeadeiro.

5.1.24

Petróleo

Os dentes mordem a carne fraquejada

sentem o sangue morno a balbuciar

como se não houvesse inocentes

e as tábuas herdadas não fossem 

do vazamento da maré.

O cicerone aposta no esgrima

aposta no atleta com menos hipóteses

aposta que a aposta será um epílogo

se tiver vencimento.

Os dentes souberam da manhã

e a carne sabia ao crepúsculo por inaugurar.

#3019

A deriva

deriva,

à deriva.

4.1.24

Autofagia

A árvore estilhaçada

a prova de morte de um ciclone

ou apenas

o estado da arte da mão humana

avançando no agravo

de quem precisa da infâmia

para se estabelecer.

#3018

Um artesão

disfarçado de oráculo

porque o povo tem a mania

de querer saber do futuro.

3.1.24

Injustiças indocumentadas (276)

Não te preocupes

com os pontos nos i.

Preocupa-te

com os pontos

na foz das frases.

#3017

Encerrado para obras,

disse.

Era a fingir

só para fugir dos radares.

2.1.24

Junta autónoma da poesia

Escolhe um cantoneiro

um que esteja de atalaia ao asfalto da poesia

e tu, grato,

danças uma dança caótica

sabendo que é a desordem que rima

com a poesia. 

Antes da estocada final

roubas um marco geodésico

que mede a desprecisão da métrica

como tu medes o tamanho das peúgas

ou a volumetria do suor. 

De ti poderão dizer as coisas piores;

não te apoquentas:

as más profecias

são apalavradas nas tuas costas 

e tu dirás

que as costas não têm ouvidos. 

Quando chegar ao Natal,

não te esqueças 

da “lembrançazinha” 

(ah! o perfume às coisas pequeninas

ou a catedral da tão consagrada

pequenez dos costumes)

para o senhor engenheiro

que tutela

a junta autónoma da poesia.

#3016

A penumbra que fala

arranca à luz 

o silêncio sepulcral.

1.1.24

#3015

Arrancado à carne

o cadáver do ano cadivo

fica 

na alçada do olhar 

um deserto à espera de ser 

instalado.

Do lado da maré

Quero

que em galáxia se torne

o penhor de meus desejos

um miradouro sem paradeiro

onde a paisagem é esculpida por mim

às mãos fugitivas que se desaconselham.

Como se fôssemos todos apátridas

todos

os guarda-luas diligentes

que não perdoam a indigência 

a verdade teimosamente disfarçada de verdade

a utopia hasteada a hino sem bandeira

todo um labirinto sonhado 

enquanto o entardecer proclama 

a noite duradoura.