14.2.24

Injustiças indocumentadas (296)

Já alguém pensou 

no papel dos atores que fazem de mortos 

deitados na maca das autópsias?

#3061

Se muro

não rimasse 

com juro

tudo isto não seria

tão duro.

13.2.24

Injustiças indocumentadas (295)

É carnaval

e mesmo assim

muitos teimam

em levar a mal.

#3060

No cortejo de máscaras

os disfarces disfarçados.

12.2.24

#3059

O bolor que não se extingue

os senadores sem prescrição

uma cortina que deixa baço o olhar.

11.2.24

#3058

Todos servis,

deixamos

que mintam por nós

(ao regime).

10.2.24

Injustiças indocumentadas (294)

Mal se sabe

das proezas da pevide

para ser tão assiduamente

laureada.

#3057

Queremos lonjura

das regras jurássicas

dos gerontes com raízes no palco.

Injustiças indocumentadas (293)

Ao deus que dará

um deus dará

deus-dará.

9.2.24

“Core business”

Sobre a carne viva

um mar inteiro deposto

o cofre sem paradeiro

sílabas deitadas ao acaso. 

Profetas credenciados expõem teses,

são sobre inevitavelmente o futuro

e o sal do mar arrematado

embacia as tábuas oraculares

à medida que as cicatrizes 

tatuam a carne outrora 

viva. 

Os dedos fervem as uvas

à espera que cantem;

à espera:

que sejam rivais das profecias

pelo meio de jardins desleixados

e ardinas sem voz para pregões. 

Lá fora

o vento murmura (qualquer coisa)

como se fosse ele a tocar a rebate

pois os sinos estavam em greve;

a madurez da pele estende-se aos relógios

competem a ver quem anda mais depressa

e as tochas devolvem uma luz fátua,

o elixir capaz de remediar 

os gritos sem rosto. 

Há gente no baldio depois do rio

erram na margem

o olhar a perder-se da sua órbita

parece que estão à espera do anoitecer

para saquearem, às escondidas,

almas distraídas

e depois as empenharem

aos desalmados sem redenção. 

É tanta a carne viva

tanta a soletrar palavras inteiras

que a morte 

deixou de ser negócio próspero.

#3056

Tem o azar maior

muito azar

quem nunca teve azar.

#3055

A tempestade desfaleceu;

deixa destroços

para memória futura. 

8.2.24

Pelas entranhas

Em vez de saque

um saco atado aos pés

a fúria atravessada na jugular

ele há cada ingenuidade

daquelas mesmo pueris

e o logro não te pediu licença

tu ali deposto

derrotado 

pelo teu pior adversário

tu. 

Injustiças indocumentadas (292)

Quem não sai 

do lugar

perde o mar.

#3054

A pele deslaçada

vaza o exílio

encomenda-se 

à redenção.

Injustiças indocumentadas (291)

Tomar o castelo

deve ser 

mesmo

muito indigesto.

7.2.24

Húmus

A penumbra esvazia a finitude

devolve oráculos 

à irrisória geografia das farsas

e nós

apenas breves esculturas cingidas ao vento

emprestamo-nos à matéria volúvel

a indisfarçável declaração de indiferença

 

(muito embora 

a solenidade dos direitos humanos

o desminta).

 

Ajustamos a pele ao arnês

a ventoinha da tempestade acabou de soar. 

 

Vamos de abalada

que o abismo não é quando queremos. 

 

Não contem os segredos todos 

aos demónios oraculares

eles não precisam dessa cartilha

nem de saber da matemática toda. 

#3053

Não seja medo

o fraquejar

que só fraqueja

quem não tem medo.

6.2.24

Corrimão

Jogo na areia

o sal chumbado

ao sol doido. 

 

Juro ainda a tempo

no marcial empenho

que conspiro sem lei. 

 

Atiro ao convés

a caveira derrotada

depois de nela beber. 

 

O mar noturno bolça fúria

a vingança intempestiva

estilhaçada na proa. 

 

A noite demora a eternidade

a claridade exilada no naufrágio

onde já não vencem os ousados.

Injustiças indocumentadas (290)

Larga o osso, 

tanta ferocidade

dá-te conta da dentadura.

#3052

Dias estes

aziagos

das pessoas

que medem quilómetros.

5.2.24

Gramática

Ontem 

esqueci-me das vírgulas

disfarçado de sicário 

remexi na gramática,

despojada de aritmética 

e de espelhos.

Hoje

deixei de saber o critério:

uma espada veio a direito

e fugi

a tempo (a tempo)

antes que fosse estilhaçado

na desbondade da gramática

ferida.

#3051

De dia em dia

a tontura dos apressados 

dos que oxalá

soubessem adiar.

4.2.24

Injustiças indocumentadas (289)

Está em falta

a genealogia

das más famílias.

#3050

Não fôssemos lobo

em vez de gente

matávamos fome

em vez de gente. 

3.2.24

O adeus de deus

Hoje

destoei da maré vincenda

e fiz-me náufrago

de águas amanhecidas. 

Inventei verbos de outro modo

impossíveis

arranquei preconceitos pelas raízes

provoquei vulcões adormecidos

virei obras de arte do avesso

fiz-me

interrogações que andavam embaciadas. 

 

Se fosse pelos dias passados

não havia futuro

não tinham prescritos os compêndios arcaicos

terçando entre as ondas ateadas pelo medo

como se fossem apenas pueris os heróis

gestas de outrora

descaminhadas. 

 

Os maninhos queriam brotar das mãos

mas a lucidez lancinante cuspia um travão

e as rugas que amedrontavam o futuro

entravam no diadema da alma

elas tão dóceis

tão imperturbáveis

mapa irrisório que seria atlas pressentido. 

Os olhos não tinham capas

não se escondiam das vetustas sombras

das sombras que hipotecavam o sangue errático;

se houvesse epitáfios revelados a destempo

se o testamento que se desampara do tempo

não exigisse a gramática impossível

daria das paredes os fungos improváveis

a aquiescência indolor aos degraus sem aviso:

então seria uma olimpíada altiva 

o verso duplo frequentado em tertúlias

a glosa do indizível

a manhã enfim clara

o sono temperado, esgrimindo contra a insónia,

o diário ornamento a ferver sorrisos escaninhos

e as mãos fundamente nas águas mansas

dissolvendo daninhos furtos dos féretros afins

a calma inteira devolvida ao mar manso

a contemplação de tudo no palco sem pregas

apenas

o eu indissolúvel

procurador da indiferença geral

os olhos desvendados à procura da lava

o corpo inteiro

pronto

a ser manhã, outra vez. 

#3049

Vi-o passar:

era a sua própria procissão

um rosto escandido

na miséria da angústia. 

2.2.24

Eis a desumanização no seu desesplendor

O beijo sequestrado

o desejo adiado

o sexo descombinado

o instinto esbulhado. 

 

Somos a farsa em bardo

nosso o inumano lodo

no santuário da carne não provado

deixamos o de nós robot estacionado. 

 

Se este é o porvir desenhado

de nós dirá o corpo anestesiado

e o tempo vindouro esventrado

pelo espírito abrutalhado. 

 

Este passa a ser o corpo calado

com medo de ser domado

ele do avesso virado

verbo de um destino adulterado. 

Injustiças indocumentadas (288)

O hino do conservador

é dizer

a toda a hora

não desfazendo.

Injustiças indocumentadas (287)

Contas

as contas

incertas.

Contas

com as contas

sem paradeiro.