19.2.24

#3067

Estar na linha de trás 

sossegadamente 

vestido de anónimo.

18.2.24

Corpos entrelaçados

Cobro à noite 

o penhor da carne em combustão. 

Não sei do mais, 

a não ser das tréguas interiores 

que perfumam o tempo. 

Só de ti espero um campo de flores. 

Eu sou o perfume que delas arrancas. 

Só sei da noite a voz fulgurante, 

as tochas ateadas no chão que é pele. 

Até que seja manhã 

e dela a façamos miradouro 

por onde espreitamos 

os corpos nossos entrelaçados.

#3066

As fragas abrem-se ao sol

libertam-se

do seu nevoeiro interior

e falam, 

pródigas como nunca falaram.

17.2.24

#3065

O dedo daninho

dá em dobro

a dádiva do mesquinho.

16.2.24

O sabor do basalto

Os braços contorciam-se

pareciam agitar os fantasmas escondidos

até que fosse vaza a maré

e extintos pudessem ser recolhidos. 

Contorcido já o corpo inteiro

tirando as arestas da bússola

enquanto altiva uma voz advertia

que possivelmente o comboio estava atrasado

um exército de vultos

espreitava pela escotilha 

na diligente atalaia dos distraídos

a carne todavia sem canhão

por omissão das máscaras inválidas. 

Um tremor da mão

aconchegava o suor precipitado

a carne enfim deposta pelo cansaço:

oxalá viessem os procuradores da indigência

ensinar a infecunda aspiração a ser maior

e com eles levassem estas águas puídas

para depois ser noite pura

a porta vedada à insónia

aos lúgubres embaixadores da inocência. 

Pura noite púrpura

a cor odiada

por todavia adiado ódio

se por compensação

a insónia exorcizar.

#3064

[Variação do #3063]

 

Somos nós

que arrastamos decadência.

não é o tempo.

#3063

As cores puídas

à espera da fuligem

um retrato 

da decadência do tempo.

15.2.24

A aguarela sem moldura

Atiras os dados

o calibre das folhas caducas

estilhaçado no frangir das folhas

à mercê da fragilidade cadente

do estanho que tatua a pele.

 

Aos dados dizes segredos

inventas a sobriedade cozinhada

entre páginas consuetudinárias

e palavras coevas que desdizem o futuro.

 

Pela amostra dos sortilégios

não se esperam proezas com arnês:

já se pressente o abismo

antes de chegares ao promontório

e não abrandas o passo.

 

Sabes

que um salto de gigante

não está vedado

e ninguém te ensinou

a proibição dos sonhos.

 

À hora em que escrevo

não sei 

se já te chamam herói

ou 

se te vou visitar ao cemitério.

Injustiças indocumentadas (297)

Nas autoestradas

não há alminhas

é sempre a acelerar

sempre para a frente

é proibido

lembrar os mortos.

#3062

Baixas a arma:

entras no templo

dos heróis.

14.2.24

Injustiças indocumentadas (296)

Já alguém pensou 

no papel dos atores que fazem de mortos 

deitados na maca das autópsias?

#3061

Se muro

não rimasse 

com juro

tudo isto não seria

tão duro.

13.2.24

Injustiças indocumentadas (295)

É carnaval

e mesmo assim

muitos teimam

em levar a mal.

#3060

No cortejo de máscaras

os disfarces disfarçados.

12.2.24

#3059

O bolor que não se extingue

os senadores sem prescrição

uma cortina que deixa baço o olhar.

11.2.24

#3058

Todos servis,

deixamos

que mintam por nós

(ao regime).

10.2.24

Injustiças indocumentadas (294)

Mal se sabe

das proezas da pevide

para ser tão assiduamente

laureada.

#3057

Queremos lonjura

das regras jurássicas

dos gerontes com raízes no palco.

Injustiças indocumentadas (293)

Ao deus que dará

um deus dará

deus-dará.

9.2.24

“Core business”

Sobre a carne viva

um mar inteiro deposto

o cofre sem paradeiro

sílabas deitadas ao acaso. 

Profetas credenciados expõem teses,

são sobre inevitavelmente o futuro

e o sal do mar arrematado

embacia as tábuas oraculares

à medida que as cicatrizes 

tatuam a carne outrora 

viva. 

Os dedos fervem as uvas

à espera que cantem;

à espera:

que sejam rivais das profecias

pelo meio de jardins desleixados

e ardinas sem voz para pregões. 

Lá fora

o vento murmura (qualquer coisa)

como se fosse ele a tocar a rebate

pois os sinos estavam em greve;

a madurez da pele estende-se aos relógios

competem a ver quem anda mais depressa

e as tochas devolvem uma luz fátua,

o elixir capaz de remediar 

os gritos sem rosto. 

Há gente no baldio depois do rio

erram na margem

o olhar a perder-se da sua órbita

parece que estão à espera do anoitecer

para saquearem, às escondidas,

almas distraídas

e depois as empenharem

aos desalmados sem redenção. 

É tanta a carne viva

tanta a soletrar palavras inteiras

que a morte 

deixou de ser negócio próspero.

#3056

Tem o azar maior

muito azar

quem nunca teve azar.

#3055

A tempestade desfaleceu;

deixa destroços

para memória futura. 

8.2.24

Pelas entranhas

Em vez de saque

um saco atado aos pés

a fúria atravessada na jugular

ele há cada ingenuidade

daquelas mesmo pueris

e o logro não te pediu licença

tu ali deposto

derrotado 

pelo teu pior adversário

tu. 

Injustiças indocumentadas (292)

Quem não sai 

do lugar

perde o mar.

#3054

A pele deslaçada

vaza o exílio

encomenda-se 

à redenção.

Injustiças indocumentadas (291)

Tomar o castelo

deve ser 

mesmo

muito indigesto.

7.2.24

Húmus

A penumbra esvazia a finitude

devolve oráculos 

à irrisória geografia das farsas

e nós

apenas breves esculturas cingidas ao vento

emprestamo-nos à matéria volúvel

a indisfarçável declaração de indiferença

 

(muito embora 

a solenidade dos direitos humanos

o desminta).

 

Ajustamos a pele ao arnês

a ventoinha da tempestade acabou de soar. 

 

Vamos de abalada

que o abismo não é quando queremos. 

 

Não contem os segredos todos 

aos demónios oraculares

eles não precisam dessa cartilha

nem de saber da matemática toda. 

#3053

Não seja medo

o fraquejar

que só fraqueja

quem não tem medo.

6.2.24

Corrimão

Jogo na areia

o sal chumbado

ao sol doido. 

 

Juro ainda a tempo

no marcial empenho

que conspiro sem lei. 

 

Atiro ao convés

a caveira derrotada

depois de nela beber. 

 

O mar noturno bolça fúria

a vingança intempestiva

estilhaçada na proa. 

 

A noite demora a eternidade

a claridade exilada no naufrágio

onde já não vencem os ousados.

Injustiças indocumentadas (290)

Larga o osso, 

tanta ferocidade

dá-te conta da dentadura.