22.2.24

#3071

Eu podia ser

a voz do Inverno

o silêncio dos prantos

o peito sem fronteiras

um poema adiado.

21.2.24

Injustiças indocumentadas (298)

Andar nas bocas do mundo

dá trabalho, e muito,

a muitos dentistas.

#3070

Tramita

o jurisconsulto

no justo travar do locupletamento

repristinando o equânime latejar

convertendo os pirómanos ao sinalagma. 

20.2.24

Partida

O fogo posto

 

tardio

 

convence déspotas

a cuidarem do devir

 

adivinham

que depois do chão

um verosímil precipício

 

inútil o varão que foi 

de torturas muitas. 

 

Fidalgo

 

impenitente

 

desova a possuída tença

da altivez

 

incapaz

de olhar por dentro dos olhos

 

incapaz

 

incapaz. 

 

Já não dorme

(assim sonha)

 

a ceifa sombria em cima dos dias

os dedos trémulos

a voz cegada

só tosse e escarro

 

um espelho

afinal

 

o testamento 

ainda 

em vida. 

 

Os pesadelos:

 

os de outrora

antes do sangue envenenado

pelo medo

eram os sonhos melhores. 

 

Agora

 

a prescrição

prova dos factos

 

a corrosão

 

sobe ao tabuleiro

 

ele

só à espera

de ser peça 

derrubada

 

mera folha 

apanhada

 

no sortilégio

de um vento

 

novo. 

 

O novo


na coroa do velho. 

#3069

Se deus é uma pessoa

tem NIF e CC e passaporte

(e de que país é o passaporte?).

 

[Uma fadista, destas modernas, teve uma epifania a dobrar: deus é uma pessoa]

19.2.24

Dicionário de antónimos

Da matança orgulhosa

não fogem em prantos

os carrascos sem sangue.

Escondem 

as ossadas do saque

e a ferrugem

cobre os rostos dos mercenários

deixa-os com uma pele sem idioma.

Atiram-se à manhã

na extinção do remorso

deles é uma voz sem rugas,

os farsantes que correm 

contra as serenatas sem intenções.

#3068

O presente 

não se conjuga 

no passado.

#3067

Estar na linha de trás 

sossegadamente 

vestido de anónimo.

18.2.24

Corpos entrelaçados

Cobro à noite 

o penhor da carne em combustão. 

Não sei do mais, 

a não ser das tréguas interiores 

que perfumam o tempo. 

Só de ti espero um campo de flores. 

Eu sou o perfume que delas arrancas. 

Só sei da noite a voz fulgurante, 

as tochas ateadas no chão que é pele. 

Até que seja manhã 

e dela a façamos miradouro 

por onde espreitamos 

os corpos nossos entrelaçados.

#3066

As fragas abrem-se ao sol

libertam-se

do seu nevoeiro interior

e falam, 

pródigas como nunca falaram.

17.2.24

#3065

O dedo daninho

dá em dobro

a dádiva do mesquinho.

16.2.24

O sabor do basalto

Os braços contorciam-se

pareciam agitar os fantasmas escondidos

até que fosse vaza a maré

e extintos pudessem ser recolhidos. 

Contorcido já o corpo inteiro

tirando as arestas da bússola

enquanto altiva uma voz advertia

que possivelmente o comboio estava atrasado

um exército de vultos

espreitava pela escotilha 

na diligente atalaia dos distraídos

a carne todavia sem canhão

por omissão das máscaras inválidas. 

Um tremor da mão

aconchegava o suor precipitado

a carne enfim deposta pelo cansaço:

oxalá viessem os procuradores da indigência

ensinar a infecunda aspiração a ser maior

e com eles levassem estas águas puídas

para depois ser noite pura

a porta vedada à insónia

aos lúgubres embaixadores da inocência. 

Pura noite púrpura

a cor odiada

por todavia adiado ódio

se por compensação

a insónia exorcizar.

#3064

[Variação do #3063]

 

Somos nós

que arrastamos decadência.

não é o tempo.

#3063

As cores puídas

à espera da fuligem

um retrato 

da decadência do tempo.

15.2.24

A aguarela sem moldura

Atiras os dados

o calibre das folhas caducas

estilhaçado no frangir das folhas

à mercê da fragilidade cadente

do estanho que tatua a pele.

 

Aos dados dizes segredos

inventas a sobriedade cozinhada

entre páginas consuetudinárias

e palavras coevas que desdizem o futuro.

 

Pela amostra dos sortilégios

não se esperam proezas com arnês:

já se pressente o abismo

antes de chegares ao promontório

e não abrandas o passo.

 

Sabes

que um salto de gigante

não está vedado

e ninguém te ensinou

a proibição dos sonhos.

 

À hora em que escrevo

não sei 

se já te chamam herói

ou 

se te vou visitar ao cemitério.

Injustiças indocumentadas (297)

Nas autoestradas

não há alminhas

é sempre a acelerar

sempre para a frente

é proibido

lembrar os mortos.

#3062

Baixas a arma:

entras no templo

dos heróis.

14.2.24

Injustiças indocumentadas (296)

Já alguém pensou 

no papel dos atores que fazem de mortos 

deitados na maca das autópsias?

#3061

Se muro

não rimasse 

com juro

tudo isto não seria

tão duro.

13.2.24

Injustiças indocumentadas (295)

É carnaval

e mesmo assim

muitos teimam

em levar a mal.

#3060

No cortejo de máscaras

os disfarces disfarçados.

12.2.24

#3059

O bolor que não se extingue

os senadores sem prescrição

uma cortina que deixa baço o olhar.

11.2.24

#3058

Todos servis,

deixamos

que mintam por nós

(ao regime).

10.2.24

Injustiças indocumentadas (294)

Mal se sabe

das proezas da pevide

para ser tão assiduamente

laureada.

#3057

Queremos lonjura

das regras jurássicas

dos gerontes com raízes no palco.

Injustiças indocumentadas (293)

Ao deus que dará

um deus dará

deus-dará.

9.2.24

“Core business”

Sobre a carne viva

um mar inteiro deposto

o cofre sem paradeiro

sílabas deitadas ao acaso. 

Profetas credenciados expõem teses,

são sobre inevitavelmente o futuro

e o sal do mar arrematado

embacia as tábuas oraculares

à medida que as cicatrizes 

tatuam a carne outrora 

viva. 

Os dedos fervem as uvas

à espera que cantem;

à espera:

que sejam rivais das profecias

pelo meio de jardins desleixados

e ardinas sem voz para pregões. 

Lá fora

o vento murmura (qualquer coisa)

como se fosse ele a tocar a rebate

pois os sinos estavam em greve;

a madurez da pele estende-se aos relógios

competem a ver quem anda mais depressa

e as tochas devolvem uma luz fátua,

o elixir capaz de remediar 

os gritos sem rosto. 

Há gente no baldio depois do rio

erram na margem

o olhar a perder-se da sua órbita

parece que estão à espera do anoitecer

para saquearem, às escondidas,

almas distraídas

e depois as empenharem

aos desalmados sem redenção. 

É tanta a carne viva

tanta a soletrar palavras inteiras

que a morte 

deixou de ser negócio próspero.

#3056

Tem o azar maior

muito azar

quem nunca teve azar.

#3055

A tempestade desfaleceu;

deixa destroços

para memória futura. 

8.2.24

Pelas entranhas

Em vez de saque

um saco atado aos pés

a fúria atravessada na jugular

ele há cada ingenuidade

daquelas mesmo pueris

e o logro não te pediu licença

tu ali deposto

derrotado 

pelo teu pior adversário

tu.