8.3.24

#3086

Disse:

vamos parentesiar

as desinterresâncias

as dores que comem as almas

as vírgulas que entaramelam a fala.

Injustiças indocumentadas (308)

Ainda bem

que o nervoso

(ainda) é miudinho.

7.3.24

Extinção

Plastifico o sangue 

não vá latejar na ebulição

e eu seja vulcão contrariado. 

 

Componho os telhados efémeros

contra a fala das velhas tempestades

é da carne feita que se fabricam as sílabas. 

 

Açambarco as desilusões sem paradeiro

no sono dos gatos furtivos

adivinhando as aleias da noite lunar. 

 

As janelas escondem o amanhã sem passaporte

as viúvas remedeiam o desmedo

nas costuras puídas pelas velhas mãos. 

 

As vozes são tomas diárias de coragem

barcos frágeis que fundeiam a despeito. 

 

O vivo sal enfeitiça as musas

desta fraca linhagem se diz soberania

os povos possuídos pela imoderação. 

 

E se ao enxofre digo oxalá

deixo ao cuidado dos copos cavernosos

esta herança feita de garfos antónimos. 

#3085

As mãos

que fazem as paredes

que arborizam a alma

que se devolve

a um rosto.

6.3.24

O avesso das profecias (ou profecias do avesso)

Já não sabia 

o que fazer com o futuro:

eram tantas as profecias

contra um futuro singular

que quase todas as profecias

participavam no erro.

Não ficou inquieto.

É da natureza das profecias

estarem destinadas a errar.

Por isso sempre disse

que preferia

as profecias sobre o passado.

#3084

Contra a tirania dos adjetivos

substantivar, 

como se fosse a fortuna

do caviar.

5.3.24

Amortecedor

Atiro paralelos aos pesadelos

convencido que os espanto

e depois

apenas titular de um responso

habilito a hábil transferência de pesares

de velha viúva 

para o jovem amordaçado pela angústia

o ancestral viveiro das dúvidas existenciais

que já não assombram a velha. 

 

Talvez haja telhados sem telhas

uma ardósia que dispensa o giz

crianças a pedirem o tempo vagaroso

mistérios que se emanciparam do anonimato

pais furtivos que não juram filhos. 

 

Colhe-se o incenso de ouro

que procede de sílabas serenas 

que sobem à boca literal. 

Ninguém pergunta pelos deuses

já tomaram conta dos desertos

só sabem ser curadores 

de ermos lugares sem gente. 

 

Um dia destes

tiro uma fotografia com o pneu abandonado

ou peço a um gato de rua

que seja poeta na minha vez

enquanto 

de fora

contemplo o ocaso dos sentidos

a perfeita elegia do dia. 

#3083

Um ombro

mesmo à mão

um arnês contra

a melancolia.

4.3.24

Crónica dos bons costumes

A burla 

trouxe sal para os olhos

dos burlados.

Mal deram conta do burlão

os heróis encapotados

assobiaram para a lua,

que estava magnífica

a lua.

O burlão correu os quatrocentos metros

em tempo pré-olímpico

não contava com uma barreira 

quando desfez uma esquina

e foi a esquina 

com a ajuda da barreira

que o desfez.

Ficou estatelado

queixava-se de dores lancinantes

talvez tivesse uma ou duas fraturas

ou então

eram 

(diria o povo tão obediente aos costumes)

as dores de consciência

da malvada da consciência.

Apurada a presença da polícia

os oficiais de serviço não escondiam o enfado:

tiveram de interromper o jantar

e as cervejas nem a meio iam

agora vão ficar mornas e imprestáveis.

Os oficiais de serviço

chegaram em câmara lenta

e, com denodo e elevado sentido de solenidade 

(ou, chamemos-lhe: complexo de farda),

prenderam o meliante

porque a ambulância chegou mais tarde

(os paramédicos não interromperam o jantar

e ainda por cima dava na televisão

o Vitória de Setúbal).

O burlão contorcia-se em dores

e o povo mesquinho

partidário do olho-por-olho-dente-por-dente

dizia com os pulmões inteiros

“é bem feito, seu pulha, é bem feito”.

 

Para crónica dos bons costumes

não está nada mal

anuiu o observador imparcial.

#3082

O corpo

toca a redenção

no poema vago 

que coloniza a manhã.

3.3.24

O tempo sem modo

Só do luar temos as mãos que juram o tempo. Dizem: a última vez. Nós é que ultimamos a vez em que nos deitamos ao poema. Sua é a palavra sem medo, o sortilégio expropriado à sorte. Não gostamos de profecias. Não queremos saber quando é a última vez. 

#3081

Não importa

dezoito ou dezanove

ou outro algarismo qualquer

desde que 0 > 1.

2.3.24

Injustiças indocumentadas (307)

Ninguém sabe

aonde fica

a fábrica de fazer tempo.

Renorte

Assaltas as vozes sísmicas que levantam

o medo. 

Juntas os estilhaços que herdaste

contas as espadas puídas

e adivinhas

os litros de sangue derramados

a estultícia que soa aos séculos atravessados. 

Povoas as fortalezas:

crês que não têm validade

os oráculos escondidos atrás dos ossos

os chapéus desfilados no fingimento de eruditos. 

Antes fossem atrasos 

os disfarces de progresso

antes houvesse indigência a atapetar as ruas

esgrimindo os rostos transidos de medo

e todos os desejos tivessem assinatura diária. 

Para depois

em cantos desastrados

descobrirmos os tentáculos que tudo sufocam

e num golpe certeiro

cortar a goela destes mastins

para então deixar assentar 

a luz fria que destoa da servidão.

#3080

O tempo teimoso

torna a tirar tempo

ao seu tirocínio.

1.3.24

O dono da sonoplastia

Pretérito eterno

interno mérito

ou o prefácio flácido

do fleumático ático.

Eterno o interno

sem o governo ermo

fica-lhe bem o termo

como pretérito prefácio

ou apenas flácido

fleuma sem chama

que chama o verbete

fora da enciclopédia.

Injustiças indocumentadas (306)

Vejo 

cometas

todos os dias.

#3079

O estuário

não desdiz a promessa

deixa o entardecer

falar por si.

29.2.24

Protetorado

Sem a fala amanhecida

os dedos pedem um cicerone

suplicam 

a melhor água de mananciais remotos

até que seja audível a carne

até

que se prometam árvores bucólicas

o tempo imoderado nos espelhos arrumados

um poema improvável

as notas escarlate sobre o veludo da pele

até

que se desatem os medos profundos

e tudo o que seja sobressalto 

venha no rosto caudaloso 

e detestadas sejam 

as algemas que amordaçam as vozes 

– as vozes que têm tantas falas 

em saldo.

Injustiças indocumentadas (305)

Levava muito a sério

não se levar a sério.

Injustiças indocumentadas (304)

Mudam-se as vontades

mantêm-se os tempos.

Injustiças indocumentadas (303)

Pela lógica dos mercados

este bissexto dia

devia valer

quatro vezes mais

que os outros dias.

#3078

Se antes fosse 

saudade

mais tarde seria 

desencanto.

28.2.24

Injustiças indocumentadas (302)

O belo em moldura.

O belo emoldura.

#3077

Enfiou o barrete.

Nunca mais

desaprendeu.

27.2.24

Estado atual: a pregar uma partida a Narciso

Que pareçam balofos

os patriarcas tonitruantes

os que emprestam perfume garrido

à passagem

inebriados

constantemente inebriados

pelo secular espelho que os devolve

em sumptuosas silhuetas

que muito os envaidecem. 

Ainda bem:

enquanto se esgotarem 

na frivolidade das silhuetas 

de que não são mais

não causam grande dano. 

#3076

Onde 

a maldade

se faz miradouro

não é escaninho

é uma gramática assídua.

26.2.24

Eclipse

O eclipse aviva a penumbra

como se as sombras vivessem

nas costas das mãos.

As conchas cadáveres

exibem as praias da sua predileção.

Os mais velhos

sem sono

escondem da noite as rugas

só para a manhã não açambarcar 

os dedos trémulos dos relógios.

Injustiças indocumentadas (301)

Contam-se

as cabeças de gado.

O resto 

(dos corpos)

parece que não importa.

#3075

A régua 

sem o esquadro

também é gente.