11.3.24

Injustiças indocumentadas (310)

Não há

ideias feitas

só há

ideias por fazer.

Injustiças indocumentadas (309)

Não há nada tão gratuito

como o relógio da igreja

que dá as horas.

#3087

Os braços

rasavam o sol a eito

no alpendre ermo.

8.3.24

#3086

Disse:

vamos parentesiar

as desinterresâncias

as dores que comem as almas

as vírgulas que entaramelam a fala.

Injustiças indocumentadas (308)

Ainda bem

que o nervoso

(ainda) é miudinho.

7.3.24

Extinção

Plastifico o sangue 

não vá latejar na ebulição

e eu seja vulcão contrariado. 

 

Componho os telhados efémeros

contra a fala das velhas tempestades

é da carne feita que se fabricam as sílabas. 

 

Açambarco as desilusões sem paradeiro

no sono dos gatos furtivos

adivinhando as aleias da noite lunar. 

 

As janelas escondem o amanhã sem passaporte

as viúvas remedeiam o desmedo

nas costuras puídas pelas velhas mãos. 

 

As vozes são tomas diárias de coragem

barcos frágeis que fundeiam a despeito. 

 

O vivo sal enfeitiça as musas

desta fraca linhagem se diz soberania

os povos possuídos pela imoderação. 

 

E se ao enxofre digo oxalá

deixo ao cuidado dos copos cavernosos

esta herança feita de garfos antónimos. 

#3085

As mãos

que fazem as paredes

que arborizam a alma

que se devolve

a um rosto.

6.3.24

O avesso das profecias (ou profecias do avesso)

Já não sabia 

o que fazer com o futuro:

eram tantas as profecias

contra um futuro singular

que quase todas as profecias

participavam no erro.

Não ficou inquieto.

É da natureza das profecias

estarem destinadas a errar.

Por isso sempre disse

que preferia

as profecias sobre o passado.

#3084

Contra a tirania dos adjetivos

substantivar, 

como se fosse a fortuna

do caviar.

5.3.24

Amortecedor

Atiro paralelos aos pesadelos

convencido que os espanto

e depois

apenas titular de um responso

habilito a hábil transferência de pesares

de velha viúva 

para o jovem amordaçado pela angústia

o ancestral viveiro das dúvidas existenciais

que já não assombram a velha. 

 

Talvez haja telhados sem telhas

uma ardósia que dispensa o giz

crianças a pedirem o tempo vagaroso

mistérios que se emanciparam do anonimato

pais furtivos que não juram filhos. 

 

Colhe-se o incenso de ouro

que procede de sílabas serenas 

que sobem à boca literal. 

Ninguém pergunta pelos deuses

já tomaram conta dos desertos

só sabem ser curadores 

de ermos lugares sem gente. 

 

Um dia destes

tiro uma fotografia com o pneu abandonado

ou peço a um gato de rua

que seja poeta na minha vez

enquanto 

de fora

contemplo o ocaso dos sentidos

a perfeita elegia do dia. 

#3083

Um ombro

mesmo à mão

um arnês contra

a melancolia.

4.3.24

Crónica dos bons costumes

A burla 

trouxe sal para os olhos

dos burlados.

Mal deram conta do burlão

os heróis encapotados

assobiaram para a lua,

que estava magnífica

a lua.

O burlão correu os quatrocentos metros

em tempo pré-olímpico

não contava com uma barreira 

quando desfez uma esquina

e foi a esquina 

com a ajuda da barreira

que o desfez.

Ficou estatelado

queixava-se de dores lancinantes

talvez tivesse uma ou duas fraturas

ou então

eram 

(diria o povo tão obediente aos costumes)

as dores de consciência

da malvada da consciência.

Apurada a presença da polícia

os oficiais de serviço não escondiam o enfado:

tiveram de interromper o jantar

e as cervejas nem a meio iam

agora vão ficar mornas e imprestáveis.

Os oficiais de serviço

chegaram em câmara lenta

e, com denodo e elevado sentido de solenidade 

(ou, chamemos-lhe: complexo de farda),

prenderam o meliante

porque a ambulância chegou mais tarde

(os paramédicos não interromperam o jantar

e ainda por cima dava na televisão

o Vitória de Setúbal).

O burlão contorcia-se em dores

e o povo mesquinho

partidário do olho-por-olho-dente-por-dente

dizia com os pulmões inteiros

“é bem feito, seu pulha, é bem feito”.

 

Para crónica dos bons costumes

não está nada mal

anuiu o observador imparcial.

#3082

O corpo

toca a redenção

no poema vago 

que coloniza a manhã.

3.3.24

O tempo sem modo

Só do luar temos as mãos que juram o tempo. Dizem: a última vez. Nós é que ultimamos a vez em que nos deitamos ao poema. Sua é a palavra sem medo, o sortilégio expropriado à sorte. Não gostamos de profecias. Não queremos saber quando é a última vez. 

#3081

Não importa

dezoito ou dezanove

ou outro algarismo qualquer

desde que 0 > 1.

2.3.24

Injustiças indocumentadas (307)

Ninguém sabe

aonde fica

a fábrica de fazer tempo.

Renorte

Assaltas as vozes sísmicas que levantam

o medo. 

Juntas os estilhaços que herdaste

contas as espadas puídas

e adivinhas

os litros de sangue derramados

a estultícia que soa aos séculos atravessados. 

Povoas as fortalezas:

crês que não têm validade

os oráculos escondidos atrás dos ossos

os chapéus desfilados no fingimento de eruditos. 

Antes fossem atrasos 

os disfarces de progresso

antes houvesse indigência a atapetar as ruas

esgrimindo os rostos transidos de medo

e todos os desejos tivessem assinatura diária. 

Para depois

em cantos desastrados

descobrirmos os tentáculos que tudo sufocam

e num golpe certeiro

cortar a goela destes mastins

para então deixar assentar 

a luz fria que destoa da servidão.

#3080

O tempo teimoso

torna a tirar tempo

ao seu tirocínio.

1.3.24

O dono da sonoplastia

Pretérito eterno

interno mérito

ou o prefácio flácido

do fleumático ático.

Eterno o interno

sem o governo ermo

fica-lhe bem o termo

como pretérito prefácio

ou apenas flácido

fleuma sem chama

que chama o verbete

fora da enciclopédia.

Injustiças indocumentadas (306)

Vejo 

cometas

todos os dias.

#3079

O estuário

não desdiz a promessa

deixa o entardecer

falar por si.

29.2.24

Protetorado

Sem a fala amanhecida

os dedos pedem um cicerone

suplicam 

a melhor água de mananciais remotos

até que seja audível a carne

até

que se prometam árvores bucólicas

o tempo imoderado nos espelhos arrumados

um poema improvável

as notas escarlate sobre o veludo da pele

até

que se desatem os medos profundos

e tudo o que seja sobressalto 

venha no rosto caudaloso 

e detestadas sejam 

as algemas que amordaçam as vozes 

– as vozes que têm tantas falas 

em saldo.

Injustiças indocumentadas (305)

Levava muito a sério

não se levar a sério.

Injustiças indocumentadas (304)

Mudam-se as vontades

mantêm-se os tempos.

Injustiças indocumentadas (303)

Pela lógica dos mercados

este bissexto dia

devia valer

quatro vezes mais

que os outros dias.

#3078

Se antes fosse 

saudade

mais tarde seria 

desencanto.

28.2.24

Injustiças indocumentadas (302)

O belo em moldura.

O belo emoldura.

#3077

Enfiou o barrete.

Nunca mais

desaprendeu.

27.2.24

Estado atual: a pregar uma partida a Narciso

Que pareçam balofos

os patriarcas tonitruantes

os que emprestam perfume garrido

à passagem

inebriados

constantemente inebriados

pelo secular espelho que os devolve

em sumptuosas silhuetas

que muito os envaidecem. 

Ainda bem:

enquanto se esgotarem 

na frivolidade das silhuetas 

de que não são mais

não causam grande dano. 

#3076

Onde 

a maldade

se faz miradouro

não é escaninho

é uma gramática assídua.