A fábrica do rancor
onde sangue e azedume
juram ódio perene.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Espelho baço,
espelho baço
diz-me
quem a autoestima
tem em pior cadastro
do que a minha.]
Sei que não é poético
fazer um poema que começa por
varizes.
Antes que sobre mim se abatam
os anátemas
em minha defesa tenho a dizer
que só tentei ser
poeta.
O choro do pássaro repentino
tantas as pontes sulcadas
entre a migração
e onde a agulha da bússola
mandou aterrar.
O choro
não por dor sua
antes o suar da dor dos outros
pressentida nas asas que abertas
recebiam ventos de diferentes paradeiros.
O choro por procuração
não havendo quem queira desse choro
nem um duodécimo.
O choro,
generoso
antes de o pássaro
querer aninhar na casa da partida.
Na noite órfã,
o sono perdeu o chão
para a rebeldia da insónia.
Depois da hora adiada
as paredes alvas desmaiam
e às mãos despoja-se a capitulação.
Sem a conjura dos demónios
avanço uma pétala
contra o penhor da noite.
Nómada no lugar certo
esbracejo não-bandeiras
atiço o idioma recauchutado
beijo o amanhã desafiado.
Dar à corda
toda
imerso na audácia
e das baias do dia
trazer
mel que adoça a pele
e a ousadia
que sinaliza a coragem.
Deixa o sangue correr
as sílabas no seu tempo certo
o amanhã ser a fotografia capaz
um nome a estrofe prometida.
A sucata ordena o feixe da decadência.
Não importa,
temos o destino cinzelado
no horizonte no seguimento do nariz.
As luas sobrepõem-se
falam mais alto que as trevas.
Todas as mãos são anónimas.
Não há autoria
nem o embelezamento improfícuo
de personalidades exacerbadas
no sangue em que correm.
Diremos amanhã
Para a ata das intenções ditaremos
talvez
impropérios
agastados que estamos.
Seremos
(pode ser dito sem recearmos represálias)
dissidentes.
Dissidentes
a começar
de nós mesmos.
Cabeçalho, cabeçudo
cabeção, cabisbaixo
canhestro, calhorda
sinistro, santeiro
simiesco, sinaleiro
armeiro, arabesco
alfândega, alentejano
bardo, bago
batráquio, balsa
poejo, paróquia
parteira, perfunctório.
Os apóstolos do ambiente
calados
estranhamente calados
não acusam a cocaína
que polui as águas do Porto.
A alma vestida a rigor
dança só quando chove
abraçada ao vento iracundo
remexendo entre as nuvens gastas
prometendo o anoitecer em forma de verso.
A alma
vestida a rigor
não desmente o estremecimento
quando o rio combina com o luar
e um prateado braço de água escorrega
até à foz
onde se confirmam os pesadelos arrematados.
A alma
vestida
a rigor
no exato testamento
das flores colhidas
dos entes a caminho de queridos
da frugalidade
que ensina a ver depois do espelho baço
adormecendo com o murmúrio do entardecer
adormecendo
abraçando aos sonhos exilados
na exaltação que se cola à pele desadormecida.
Porque
a alma
está
vestida
a rigor.
O poema
é as nossas mãos
que se fundem
na véspera da loucura.
O poema
é o silêncio que colonizou
estrofes.
O poema
é a rua inaugurada
no despontar da cidade.
O poema
é a manhã que levita
sobre os sonhos limítrofes.
O poema
é um verso singular
tatuado no coração amplo.
O poema
é o piano que ensinamos
a quatro mãos.
O poema
é a escultura
em que nos tornamos
o marco geodésico adivinhado
o cais terminal sem gramática por baixo
a entardecida jarra onde nadam
as flores robustas.
O poema
é matéria-prima
constante
um sinal sem trânsito
dieta que não pede regras
o poema armilar
a esbracejar a alma combustível
no parapeito do amanhã.
O poema
não precisa de poeta
só precisa
dos nossos olhares impuros
alfaiates da métrica em desuso
pátria maternal das manhãs ateadas
no incenso sussurrado
pelas nossas bocas.
O poema
não precisa
de poetas
se nós lhe demos
corpo.