19.7.24

Olha, sem mãos no guiador

Ólafur Arnalds, “Only the Winds”, in https://www.youtube.com/watch?v=9eWewdTkghM


Um pedaço de lava embaraça a boca

os lábios tremem com a digestão das palavras

sábios os seios descobertos à altura da maré.

 

A galáxia perdida no paradeiro do escol

entardece sobre o orvalho prematuro

os vultos amotinam-se sob a lua tardia.

 

Na praia a areia fosca faz de penumbra

ao longe a silhueta esconde os segredos 

suados os olhos que marejam no miradouro.

 

As estrofes ateiam o fogo na boca do estuário

contra os velhos arqueados que esperam a morte

lambendo o passado com a angústia da perda.

 

São doces as uvas que descem à boca

dizem que não é estéril a combustão que medra

e os dias vindouros servem-se em sonhos.

 

Descendem os dias da sementeira metódica

os dedos ungidos por deuses sem nome

os corpos fundidos na chuva torrencial.

 

Não é o adeus que combina o verbo imperial

nem a angústia que se abraça ao mastro inocente

e da rua trago um lenço cheio de versos.

 

Até o oxalá se esgota no crepúsculo avoengo

em gotas pequenas que esbarram na pele madura

daqui ao mundo em frágeis teclas ciciadas. 

Injustiças indocumentadas (399)

Serenata,

há chuva.

Injustiças indocumentadas (398)

A orelha de Van Gogh,

ou a de Niki Lauda;

não a outra

atingida de raspão

por um tiro amigo.

#3219

Se somos contra os mitos 

somos omissos 

nas lendas que nos limitam.

18.7.24

A viagem que não precisa de passaporte

A dança que comanda o corpo amanhece o sal que fala pela pele. 

Guardo os sonhos para páginas de um tempo futuro, a moldura onde os rostos não cabem.

As fronteiras são a aposta da imaginação.

E nós, seus mecenas, só à espera das viagens que nos levam ao mundo.

Tenho quantos minutos?

Tenho quantos minutos

para deixar que a boca

seja testa-de-ferro 

de meu sentir?

 

Os campos magnéticos 

magníficos

hipnotizam os olhares atestados

são como maestros à prova de bala,

caóticos,

empenhamos na desorganização de tudo

como se um furacão varresse as fronteiras

e sob os escombros 

se aproveitassem os destroços sem medo. 

 

Por cada maré

um copo de dia para tomar conta do cais

antes de as embarcações subirem ao mar

cheias de marinheiros contrariados

e de uma faina prometida pela oração do estuário,

ou o penhor que respira por dentro da pele.

 

As mulheres inteiras esperam

e não rezam

não rezam

para não chamar o azar. 

Confiam no sortilégio da maré

esperam do poema

o vencimento de todas as causas. 

 

Cheiram 

desde os quartos onde se consuma a solidão

a maresia distante

como se chamassem os maridos

e sob a penumbra 

silenciassem as dores da ausência. 

 

O contramestre gasta a voz

contra o mar tempestuoso. 

Não sabemos nada;

nada:

se fôssemos marinheiros

qual seria o mandamento da vida

se ao sair de casa

não soubéssemos

se a ela voltaríamos?

Injustiças indocumentadas (397)

Ninguém perguntou 

se o cavalinho 

gosta de estar 

à chuva. 

#3218

Um colar de matéria gris

um calendário ornado a giz

um entardecer grato ao que diz.

17.7.24

O aristocrata insuspeito

O insuspeito dandy

desfila a pose aristocrática

sua é a medida do palco

em constante suspiração diletante.

A displicência metódica

esconde o tratamento subalterno

dedicado aos comuns.

Ao contrário

da teoria que tinha as esporas

a igualdade é só para enganar tolos

e nem é preciso encomendar os bolos.

A realidade desmentia-o

todos os dias:

na repartição de finanças

no café da avenida

na fila para entrar no aeroporto

no número do cartão de cidadão.

Não importava:

os pergaminhos voam alados

e não são ideólogos datados

que os desmontam.

O resto

ficava por conta do bigode excêntrico

da impecável consciência,

e de um inglês com cerrado sotaque de Derby 

– como se isso importasse aos demais.

A meio do tempo contado

descobriu-se:

o dandy insuspeito

vota em partidos de esquerda

 

(e não consta 

que seja de trocar quadrantes

nem de ter dissonâncias cognitivas).

Injustiças indocumentadas (396)

E as feias artes, 

já não são artes 

só pela feiura?         

#3217

Os bolsos opulentos

adiam a redenção,

os deuses 

são contra fortunas sem paradeiro.

Injustiças indocumentadas (395)

Ora, ora

hora a hora.

 

[Dedicado ao anónimo que, numa caixa de comentários, comentou “hora, hora”]

16.7.24

Papel de parede

Os espelhos admirados contorcem o riso

na inviável separação entre dia e noite

logo quando a penumbra extradita a luz clara

e muitos se exilam num muro subterrâneo.

As estrelas querem beijar a terra

ao que parece:

o tumulto contínuo açambarca as horas pálidas

arranjam foros de medo

que se estende por cima dos horizontes.

Num sonho por amanhecer

os pés vagueiam em cima de nenúfares

combinando os violinos pontuais

com a matéria que desembaraça a noite.

Em dias assim sombrios

na boca estalam palavras frugais

antes que sejam idioma em rota de colisão

com a gramática

antes que possam vir a ser

literatura deitada no penhor/da visibilidade,

literatura em desfado lancinante.

As palavras não deviam dormir em espelhos

disse um poeta

bebendo na excentricidade 

de que se diz mecenas:

deitem-se às candeias as frases soltas

posfácios de edições prometidas

ou meras declinações de estados de espírito


(se é que se pode aceitar 

a existência de espíritos.)


Um pai gasto ensina o resto;

as aguarelas fogem da tela

odeiam molduras

têm-nas como cárceres enegrecidos

vertendo ferrugem sobre o pensamento.

Amanhã será manhã outra vez.

E nós

combinados com as estrofes inaugurais

ciciamos a moratória do medo

contentes por não sermos reféns de tatuagens

que escondem os poros puros 

que à pele têm como matriz.  

Injustiças indocumentadas (394)

Opíparas 

devem ser as botas 

para haver quem as lamba aos pares.

Injustiças indocumentadas (393)

Uma coleção de monos

que tanto cheiram a naftalina

e nem assim

previnem o caruncho.

 

[Instruções para uma vista de pássaro sobre as instituições à sua volta]

#3216

A imprecisa silhueta 

deforma o horizonte, 

refém do entardecer.

15.7.24

Cão que não morde é cão que ladra (e homens adjacentes)

Os cães

estão sempre de atalaia

ladram repetidamente

estilhaçando o silêncio da noite.

 

Dizem 

que não mordem

se calhar

porque de tanto ladrarem

ficam doídos os maxilares

e anestesiados os dentes,

 

ou então é só para provar

que o muito ladrar não quadra

com as mandíbulas certeiras

que despedaçam carne exposta

de gente alheia

que ao perímetro dos cães vier.

 

Ou então

é só para confirmar 

que os cães se inspiram nos homens

e as gongóricas vozes de protesto

depressa são amansadas

com a acepipe certo.

#3215

Sem remorsos por contar

os dias fazem-se feridas abertas

e o tempo mastiga o sangue à mostra

como mosto de um ódio fermentado.

14.7.24

Injustiças indocumentadas (392)

É maestro

aquele

que orquestra campanhas.

#3214

É cada vez mais urgente

cultivar 

o princípio do desentendimento das coisas.

#3213

Afinamos a voz 

pelas cordas roucas dos violinos 

para sabermos do doce verbo diurno.

13.7.24

#3212

Ainda está por inaugurar 

a praça dos mentirosos, 

a mais antiga de todas.

12.7.24

Blandícia

Forjado a ferro 

no anátema dos insubmissos

um nome ganha nome,

desamarradas as algemas. 

Nos despojos onde não há santos

as palavras cruas tatuadas na carne

bem fundo 

onde a carne se junta aos ossos.

Depois de consagrada

embebe-se no vinho floral

propositadamente aberto para a solenidade. 

As elegias temperam páginas de xisto

vingam nas bandeiras arrematadas ao cais

sem crime preponderante

sem que haja quem reivindique 

a sua perda. 

Não podíamos 

ornamentar as flores avulsas

diziam:

é uma litania

um gesto do permitido aos deuses

e não somos deuses

não somos premeditados. 

 

Fossem outros 

os tempos e o modo

e seríamos derrotados pelo sobressalto

de não conseguirmos ser deuses. 

 

Agora

o mel ferve na boca 

que cresce no perímetro das palavras

costuramos os bolsos puídos 

porque há amanhã

soltamos as feras domesticadas no adro

onde subimos a palco 

sem o pudor de outrora

entoamos poemas. 

Agora

não somos vítimas da nostalgia

não obedecemos se não às desregras

aos murmúrios que emprestam musgo à noite

e pelas mãos perenes

deixamos paredes untadas 

com as lágrimas de outrora,

 

que agora perdemos o pudor

e sabemos que as lágrimas 

também embelezam epitáfios. 

 

Digo

para que possam ouvir

que não sou presa do medo

e que dele me apoderei

para o desfazer em mil pequenos seixos

anónimos e indiferentes. 

 

Povoo o dia com centelhas 

com a ajuda da maré

e baixo a cota das árvores

para a elas subirmos

só para sabermos como o nosso domínio

não nos é submisso. 

#3211

As ruas não fogem do dia

no idioma da madrugada itinerante.

11.7.24

Lisnave e hélices

Quando era pequeno 

fiz uma visita de estudo 

aos estaleiros da Lisnave 

e um engenheiro, 

em jeito pedagógico,

disse aos curiosos e aos não curiosos

que hélice é uma palavra masculina. 

Anos mais tarde, 

depois de ter ensinado alguma gente 

que se dizia 

o hélice, 

espreitei no dicionário: 

hélice 

é uma palavra feminina. 

Já não fui a tempo 

de corrigir o erro: 

não consegui inventariar 

as pessoas que burlei. 

Amorteci o desencanto interior: 

a culpa 

foi do engenheiro 

e minha, 

que confiei na diligência do engenheiro. 

Nunca mais confiei em engenheiros 

(como a História política 

tratou de demonstrar).

#3210

A corda dança 

acossada pelo vento 

e os pés que a percorrem 

estipulam a vertigem.

Injustiças indocumentadas (391)

Não há direito.

Se também

não houver

esquerdo.

10.7.24

Injustiças indocumentadas (390)

Cair no goto 

é melhor 

do que cair no esgoto.

Sobre as coisas mundanas

Começo por uma metáfora;

um estaleiro

a imagem periférica da desarrumação

e todavia os operários aninham-se

num cais organizado

entre o cais em escombros

e a maré que beija os destroços

a lamber as feridas deixadas em legado. 

O fósforo acende os acrónimos do dia

desmata 

as estrofes coibidas por mastins esfomeados 

mastins que arrumam as bainhas da ordem

para o anátema da remissão. 

Não

não peçam a cor do perdão

a espuma demorada 

que amarra no canto da boca

não arranjem desculpas

nem arrematem os mais generosos de todos:

os olhos répteis mergulham na floresta

esconjuram os cruéis mandantes da dissidia

terçando o florete contra os indefesos

arrumando nas mãos as vitórias fáceis 

– as vitórias por falta de comparência. 

No banquete dos indigentes

o que falta é modéstia

um verbete de temporalidade

e um pouco de voz apessoada:

fazem-se passar por mártires

dando-se à coreografia surda 

que se prende à maresia:

o ocasional bocejo sublinha 

a continência imperatriz

e as palmas troam em surdina

como metáteses do aplauso:

não lhes falem em medo

os ouvidos fingem o esquecimento

e o futuro apalavra o fingimento do tempo

exatamente como se uma divindade

tivesse ordenado a suspensão dos relógios. 

Que sejam ateadas as estrofes mundanas

os profetas em barda 

ficando nas filas terceiras

os eruditos sem microfone já de garganta puída

e todo o clero pavoneando as fátuas fatiotas

numa procissão de falhados. 

 

Se não fossem as vozes guturais

o silêncio era a marca registada. 

 

Vozes improfícuas

adoçando as folhas do calendário

assim como um pai adoça o rosto da filha

avançam destemidas contra o mar cavado 

e prometem:

um dia destes

 

(é sempre um destes, inseguros, dias)

 

voltaremos a ser a grandeza que esquecemos. 

E ninguém 

percutiu os lábios amansados

só para perguntar 

o que importa 

a grandeza.

Injustiças indocumentadas (389)

O pagamento pontual 

não é um pagamento pontual.