17.9.24

Lupa

A pele suada corre para o precipício. 

Extasia-se, 

quando centelhas do dia corrompem a luz

e um diário se antecipa ao lugar dos deuses. 

Dizes

somos neutrais 

às profundezas em que se divide o mundo;

terrivelmente céticos

arranjamos o desmedo como modo de vida

em vez de sermos parturientes de achados

procuradores

das grandes teorias que simplificam o mundo,

as teorias que insultam o mundo

que sabemos ser incapaz de caber

em duas dúzias de palavras. 

Cobramos ao mar arrefecido

o alumínio que ferra a boca

a ossatura em que se fingem proezas;

anexamos apenas 

aqueles pequenos pedaços de pele

que ainda não tinham suado num beijo. 

E povoamos o dia 

com um copo de vinho

um poema indelével

a recordação de uma peça de teatro

toda a alquimia de que fomos autores

e toda aquela que os dias irascíveis saberão ter

por deixarmos 

em tatuada batuta mestra

as estrofes que dispensam fala

a amostra das palavras que colhem das árvores

as invisíveis armas a favor da indiferença. 

Injustiças indocumentadas (430)

Também

de conservadores de esquerda 

há notícia, 

habitam nos registos.

#3265

Hoje 

abraço uma janela 

que transige o luar.

16.9.24

Conta quilómetros

Despenteio o pensamento pesado

dou ao dia o desacontecimento grelhado

e na vetusta vitrine que viaja sobre o envelhecer

desato os pontos emaranhados

vírgulas em excesso avivando os vieses de outrora.

 

Vejo que não me valido nesses preparos

desejo que se deseja no desacato dos costumes

em sistemáticas perguntas que assimilam o saber 

em vez do harpejo que desarruma as lantejoulas

em equívocos acamados numa doca seca.

 

Vejo-me

na distância que há de mim aos lábios desalinhados

numa linha constante

desenhada por lídimos embaixadores

eles ou eu

no primeiro salto por cima do abismo

até encontrar 

as folhas desmatadas entre as mãos.

#3264

Deitam-se os faróis 

sobre a matéria válida do entendimento 

e nem assim 

a luz se abate sobre o dia timorato.

15.9.24

#3263

Somos muito dados aos ismos 

até nos tornarmos istas 

sem darmos conta das prisões

a que nos abraçamos. 

14.9.24

#3262

Na pose de abadessa 

com a pança opada 

de quem não se enfarta 

com o aroma do poder.

13.9.24

Injustiças indocumentadas (429)

Não dês a palavra 

que depois 

não ta devolvem.

Censo

Só de cedo ser

cego as certezas sábias

na seara onde sobra o sono

que pela certa sou incerto

e sondo os sinos assombrados

para ao serão soltar um seráfico sorriso

e ao sabor das sílabas

saber

o sabor incensado do saber

que não se encena.

#3261

O farol aceso 

mascara a noite 

com mil disfarces 

ao arrepio da mágoa.

12.9.24

#3260

Bebem pelas medalhas 

ufanos 

legitimamente,

antes não lhes vistam à força 

a bandeira.

11.9.24

Injustiças indocumentadas (428)

De um golpe alto

ninguém fala 

em protesto.

Injustiças indocumentadas (427)

Spin,

doctor.

#3259

No rebordo do dia 

o silêncio sobe 

ao veio dos sonhos.

10.9.24

Injustiças indocumentadas (426)

Na missa campal 

voaram salmos 

esgrimiram-se orações 

e as redenções andaram em saldo. 

#3258

Um cabresto 

para o gongórico 

a bem da humanidade.

9.9.24

Ambivalente

Um estorvo que não é daninho

a água fruída pelos lábios porosos

a caxemira que se entreteve nos dedos

o sobressalto herdado de um tempo remoto

os olhos lunares atravessados na estrada

a maré alta sem mastro onde hastear

as obras peregrinas que inventam a cidade.

Injustiças indocumentadas (425)

A sociedade está fraturada.

Abram alas aos ortopedistas.

#3257

Escoltas

sob o tédio exorcizado 

a maresia das palavras combustíveis.

23.8.24

Injustiças indocumentadas (424)

Tirar

o cavalinho da chuva 

antes

que o animal se constipe.

Injustiças indocumentadas (423)

Arrojar

o barro à parede 

só para saber 

se a parede aguenta.

#3256

Por revisão constitucional 

a extinção da pastilha elástica.

22.8.24

#3255

Apeado 

extinguiu-se 

no vagar da decadência. 

21.8.24

Certificado de aforro

As pregas da velhice 

apoderam-se das páginas lidas

passam a ser o pavimento central

a orquestra onde todos tocam

de olhos fechados. 

 

O tempo é um entretenimento,

a resolução de um dos pares 

entre bolas de fumo que gravitam devagar

e olhares algures errantes na monotonia. 

 

Uns acordes avulsos

um rumorejo que vem do mar

o cabelo acetinado

ou o pouco cabelo

lembram o desinvestimento que é o futuro. 

Ou um tiro

de pólvora seca

que seca as secantes marmoreadas 

nos dentes compostos de raízes válidas. 

 

Não se pressentem 

os vultos prometidos

não vagam as horas fermentadas 

e as costas sentadas do dorso da melancolia

protestam

e protestam:

que adianta fugir do chão 

que se avizinha?

Injustiças indocumentadas (422)

O trabalho entre mãos

disfarça

o trabalho que está entre os pés.

#3254

Uma meia desfeita 

apenas 

para não ser inteiro 

desmancha-prazeres.

20.8.24

Injustiças indocumentadas (421)

Dizer da época estival 

que é a silly season

peca por excesso de autoindulgência, 

como se no resto das temporadas 

ninguém declinasse para o disparate.

Injustiças indocumentadas (420)

Dar duas a abater

e são as sucatas que ficam a lucrar.

#3253

Desinstalamos a angústia, 

penhores de uma espécie de desfuturo. 

19.8.24

#3252

A metáfora 

é um esconderijo.