A mão estendida bebe na pele suada o bordado das palavras sem adiamento. Tempera um vulcão promitente, suplica o insaciável. As bocas ateiam a combustão. Entregam os juros por inteiro em sílabas desmedidas. A manhã não passa de uma luz desmaiada. E nós, fugimos da manhã para dar ao gelo o fogo de que somos mecenas.
12.2.25
Metódico
11.2.25
O martelo
Martelo
és pneumático no percutir
e abandonas os choros ao troar insistente.
Martelo
por quem és
esvoaçando mistérios
alinhavados no movimento basculatório.
E se, martelo,
te vierem desmembrar
na solidão da madrugada altiva
seccionado a bigorna metálica
da haste em madeira puída,
de ti dirão que foste aliviado de serventia
agora perdido na inútil disfunção de ti mesmo.
Não tivesses sido algoz
agora à mercê da justiça com a assinatura
das vítimas que arrolaste.
10.2.25
Teatro
As vozes fogem dos ossos
amedrontam-se
com os opúsculos que desacertam as certezas
enquanto os demónios
que conspiram nos telhados estroncados
não se sossegam.
A trovoada ingénua
empresta uns modestos clarões à noite
vocifera o gemido castrado
dos deuses desautorizados
– os pobres deuses que
se pudessem
só tinham as saudades como alimento.
Estes são os visíveis rostos
da parte de fora dos corpos
lençóis estendidos escondendo a pele
como se fosse vergonha
o gentil canto que chama os pássaros.
9.2.25
8.2.25
7.2.25
Fintar o esquecimento
Corria o vento
mais depressa do que a memória
esbracejando com o esquecimento
como idioma franco.
Esse é o medo maior
do tempo que se transforma em idade
o esvaziar por dentro
a falta que faz aquele eu que era memória
e agora está esquartejado
num labirinto invisível.
6.2.25
Incerto
O nu motivo acendeu o verbo
agora
preso ao animal povoar
a pele que não escama às súplicas menores
logo nós
na habilitação do sangue
a desaprender a corrosão
a nossa cidade é a maresia tectónica
o abraço que funde as camadas de magma
até sermos um oráculo incerto.
5.2.25
Desembaixada
Guardo o sangue passado
no rio que se torna mar
num futuro que não tarda.
Escolho as sílabas cantantes
entre o medo de ser
e a ambição de vultos torrenciais.
A fita métrica
sobe a andares altos
onde solenes discursam
os embaixadores da pertença.
Guardo o sangue
passado de desperdício a passaporte.
Se ainda for a tempo
digam que fui discreto
na convocatória de ovações
pois, assim como assim,
elas eram sempre em causa alheia.
Nunca soube
de mim ser
embaixador.
Injustiças documentadas (503)
Tivemos
uma desinteligência artificial,
comentaram
a propósito de uma desavença.
4.2.25
Sobre beijos (e páginas) arrancados
Não se diga
de um beijo arrancado
que é como o arrancar de uma página.
Há beijos
que não se dão
a menos que sejam arrancados;
e há páginas
que merecem ser arrancadas
para ganharem adesão.
3.2.25
Candeeiros
Levas com o arroz
se fores insincero
(que gostamos de eufemismos
e insincero é menos denotativo
põe uma máscara
na mentira sistemática).
O joelho fraco vacila
afocinha na valeta marota
dele se riem os bastardos
que não fogem de manjares
mas não se importam
não andam à caça de mentores
nem se intimidam com a noite baça
que sobe ao céu desalojando o luar.
Inaugurado o silêncio
falta descobrir o primeiro a violá-lo;
não será crime airoso
nem aqui se convocam
carnalidades ao desbarato:
às vezes
antes a voz moderada
e deixar por conta do silêncio
a voz significativa.
(Ou será pior
o silêncio como uma lâmina
que decepa a confiança
pior a ser
do que as palavras
que mais feridas instruam.)
As espadas
estão despojadas pelo chão
e os tutores da lógica
destronados
resistem dentro das camisas que os aprisionam.
Não gostam de ser contrariados
não nasceram para esse desfeitear.
2.2.25
1.2.25
O futuro tem o nome do medo
Corre a voz comum
estes
são tempos da morte do teatro;
de cada vez que uma voz soluça
outras são caladas
em nome do um “bem maior”
sem haver quem informe
sobre os limites do “bem maior”.
Costuram-se enredos
adulteram-se os termos
em que se compõem os dias
jogam-se distopias contra utopias
num novelo de farsas
por onde desfila um exército de mitómanos
todos enferrujados
uns com a ferrugem do passado
outros com a ferrugem que há-de ser vindoura.
E o teatro desfalece
o palco consumido por térmitas diligentes
que torcem o braço ao tempo
e cospem nas circunstâncias.
O futuro
tem o nome do medo.
O nome
da obnóxia condição dos audazes
os que se deixam pensar pela cabeça dos outros
e são atirados para a boca das feras
orgulhosos
por ostentarem os galões de testas-de-ferro
quando, coitados, são os frágeis ossos
os óbvios candidatos a serem carcaças
quando no palco público
forem reduzidos a escombros.
As guerras
(o monopólio dos beócios
a tela onde bolçam os funestos
os que desaprenderam o que custa uma vida)
sempre foram este retrato
a síntese apurada da mais pura indignidade
do Homem.
#4001
A gala dissolve-se num instante
nós
é que somos da cerimónia os mestres
em redondas odes aos prazeres.
31.1.25
A metáfora do ovo e da transparência
Disse à gema de ovo
que emudece sem a clara
– ou não fosse a clara
a ditar a transparência do ovo.
Houvesse mais gente
a aprender a lição
e dispensadas seriam
as sistemáticas operações de limpeza
que ocupam os braços da justiça.
30.1.25
Acento tónico
Se o que dizemos
precisa de suspensórios
queremos arneses
tutores lisonjeiros que dão aval às palavras
estetas desabridos no coração da moral
um sofá rombo para exercer a preguiça.
Se o que dizemos
se subleva contra nós
não desistimos da fala
nem do consagrado direito a asnear
ou de perfumar os dias com a liberdade
de apenas
ser.
As maldições escaninhas
as que se insinuam entre teias de areia
ficam por conta de quem as tutela.
Nós
só queremos
um gelado ao entardecer
o calor da mão amada
um jardim bucólico como exílio
os filhos a espigar
e todos os ocasos que pressentem
a aurora consecutiva.
Injustiças documentadas (501)
Já que a ninguém
é dado acasalar com misérias
tirar a barriga delas
é bom conselheiro.
