5.5.25

Régua e esquadro

Por artes de um mal-entendido

assentei o cimento bem entendido

antes que fosse noite 

e já não fossem horas

de expediente. 

Tropeçava na dicção:

ele há palavras que se enrolam na língua

 

(subsidiariedade, 

inadimplemento, 

ressarcir,

ó malditas palavras anti poéticas)

 

mas antes fosse essa a textura dos males

do que serem ideias enredaras nos interstícios 

do pensamento. 

 

Antes que as fizesse passar pelos semáforos,

acendia-as:

queria saber ao que vinham

o que podiam deixar para memória futura

entre despojos e desperdícios

que adjetivos se atiravam 

para o ringue onde se antepunham:

ah, palavras rivais

pensamentos forjados na régua e esquadro

da antítese

sumarenta safra dos frutos videntes

goela por onde espreita a matriz do outro

à qual damos a mão

em vez de um não.

#4082

Os relógios tatuados até ao magma 

é deles que somos reféns sem rastilho.

4.5.25

#4081

Dizem os segredos 

que segredos há 

que não se querem como tal.

3.5.25

Injustiças documentadas (533)

O futuro adeus,

pertence.

#4080

Um suspiro

murmura no canto da boca: 

é a paciência quase a prescrever.

2.5.25

Múmia

A mortalha pendida

Acende o rosto do futuro.

 

Sobre as pedras avulsas

o xisto vago amoeda a fala

e os almocreves enlutam-se.

 

Oxalá seja estuário

o corso que se aviva 

num folião domingo,

ou será corsário

sedento de vítimas à espera

da sua espada.

Injustiças documentadas (532)

[Para a História de um apagão]

 

De Espanha 

nem boa energia 

nem energia nenhuma.

#4079

O fiasco do fisco 

formou uma fosca fossa 

que aferroou os farsantes.

1.5.25

#4078

As minhas mãos são olhos 

que aprendem a ser anfitrião 

em teu corpo.

30.4.25

Fita-cola

O furacão devorou o dia manso

o ganso dançou no paredão

 

o eremita orou no jardim

o arlequim chorou com a comandita

 

o charlatão levava a mentira no calço

o sonso vertia ranho de latão

 

a senhorita namoriscava com o jasmim

o querubim adormecia no colo da safadita

 

o fanfarrão escarnecia do tanso

o manipanso discordava do beberrão.

#4077

O dote que é dádiva 

ou, em imersão da alma, 

uma maldição.

29.4.25

Idioma

É preciso 

patrulhar o esquecimento

tirar o sal das bocas semânticas

olhar pelo avesso dos espelhos adiados

convencer os agiotas que têm a cabeça a prémio

ordenar aos ajaezados eruditos

que traduzam as falas gongóricas

amanhecer de sangue cheio

lembrar as nuvens onde repousa o futuro

misturar idiomas à volta de vírgulas rebeldes

contemplar a lua que bebe do céu

tirar as medidas que antecipam o estuário

e dizer aos que ouvem

exatamente aquilo 

que não querem 

ouvir. 

Injustiças documentadas (531)

Tecnologia, 

de ponta 

e mola.

#4076

Não fugimos do medo 

nem fingimos 

que dele não somos reféns.

28.4.25

#4075

Neste idioma que não dorme 

a vacina contra a mudez 

a moratória da solidão.

27.4.25

#4074

Adiamos, enfim, o adiamento 

hoje é o dia em que se cumpre 

o presente.

26.4.25

#4073

Do sumo da tangerina 

a viagem não deletéria 

que aclama um mistério.

25.4.25

#4072

Dispensamos padrões;

já somos penhores

da bússola interior.

24.4.25

Apostilha da concórdia (e corruptela de anexins)

Dádivas deste jeito

eram rarefeitas

e as pessoas rimavam com seu pasmo

aprendendo, muitas, o que se diz dizer

do insólito 

depois de o dicionário consultarem. 

Outros, desconfiados,

tecem um jogo de palavras

oxigenando pobreza e esmola

e, ó palco sem surpresa,

desconfiança. 

Metendo a sexta na desconfiança

travam uma perna atrás

quase seguros que a dádiva traz

 – voltando aos lugares-comuns 

terçados por anexins –

algo que pressente 

um líquido

e a boca de uma ave. 

Mas às dádivas não se diga não 

pois o idioma vulgar já consagrou 

que a um equídeo de oferta 

não se inspeciona a dentadura. 

E a ralé

(Régio, apud. Marcelo)

convencida será

pois em pior estado não estará

no pulsar das regalias outorgadas. 

Pois que visto pela lente desfocada 

dos filantropos,

sempre se poderia invocar a seu favor

que tanto pecam por albergar o canídeo

como em espantá-lo para incerto paradeiro. 

E como já impetram a moral da história

diga-se

em abono de todos

agraciados e filantropos 

que a concórdia 

é sempre a melhor moeda.

#4071

Na fotografia 

vejo através

de outros olhos.

23.4.25

Mundo de vez em quando

Ah, se bastantes fossem os ossos ocupados

como quem granjeia almas por confirmar

no espelho baço onde se agigantam sombras. 

 

Num oximoro presas

as falas condenadas à mudez

desfiliam-se dos preparos filiais

aprendem a fazer-se voz sem freio

à custa de muito porfiar. 

 

Ah, se as respostas seráficas

não fossem do tamanho de mundos inteiros

e das folhas servidas no refrigério das almas

se ocupasse a lava fingida 

– podia ser que os defeitos do mundo

deixassem de ser do mundo

e me fossem creditados 

como exclusivos.

#4070

Se por um fio se perde 

por um achado se ganha.

22.4.25

Anexação

Esqueci-me 

de anexar a noite intrínseca

de dar nome ao meu apeadeiro

de insultar os modestos soldados 

que vão à frente 

em nome da bravura de ninguém

de chamar pelos nomes que não são ouvidos. 

Fiz somas e subtrações

e a bússola continuava desamparada

com medo das vozes madrigais

errática como o vento órfão. 

E juntei

as peças desembaraçadas 

no peito descarnado que se dava à maresia

sem os vestígios de deuses

das perseguições entretanto esconjuradas

pelo esquecimento 

averbado pela língua gulosa. 

Desarmadilhei o vetusto

para grande tristeza 

de uns habitantes do Restelo

amofinados no mofo transido das medalhas 

que formalizam o esquecimento do passado. 

E agora

só faço somas

com os minutos que correm nos dedos

secando os punhais dos párias

bebendo o vinho quase apodrecido

e retendo na boca

a febril doçura das uvas 

quase bolorentas. 

#4069

Provavelmente

o impossível tornou-se improvável 

e ganhou possibilidade.

21.4.25

#4068

De cada remo 

a água transida 

na ceifa que investe.

20.4.25

#4067

Rosnar à vez 

só para ver 

quem chega a velho 

primeiro.

19.4.25

#4066

O mar coalhado 

alberga navios em vigília 

à alvorada que se monta.

18.4.25

#4065

Arrastado pela multidão 

na tradução da impotência 

(ou no baraço da comodidade).

17.4.25

Palavras descruzadas

Pelo garrote incensado

as conspirações amontoadas

no prato da História. 

Emudecem de raiva

os geniais vultos 

que cultivam o despropósito 

assobiam para o alto

como se prevenissem as desgraças

de descerem ao chão dos Homens vãos

e tudo se falasse com o verbo futuro

por tão elevada crença nos dissídios. 

Às contrariedades respondemos com esgares

o mal disfarçado desprezo pela atonia.

As pessoas não se escondem

do avesso que as desonra. 

Desovam as fraquezas que os consomem

mesmo que as fragilidades

falem de um futuro ainda por aplicar 

como se houvesse apenas 

palavras esvaziadas.

#4064

A patrulha dos adjetivos 

apertou-lhes a carótida 

e eles passaram a rarear.