17.9.25

Injustiças documentadas (590)

A falta de comparência dos deuses

deve-se à extinção do barro.

#4208

Sem mãos 

sem mãos 

sou eu, 

em combustão vulcânica, 

a conduzir um mundo.

16.9.25

Uma prateleira de versos (desbiblioteca)

Se um dia 

vier um vento omisso

e do avesso a cabeça fruir num precipício

não me digam 

que é uma conspiração de Morfeu 

não me digam

que estou de avanço pelo fuso telúrico

e de mim se espera 

apenas 

a morada do silêncio. 

Se um dia

as portas decadentes combinarem 

com os veios da luz contrafeita

e eu 

aos deuses continuar sem dizer palavra

que me sejam abraçadas as bocas extáticas

a irremediável porção da noite

desencomendada aos anjos galopantes

e num arremedo de audácia

a mim 

convoquem as estrofes ajardinadas

o penhor de todos os medos

e eu

via láctea sem muros

me torne baldio não cadastrado

o amador profissional

que dá de penhor o sangue eflúvio

e uma prateleira de versos.

#4207

Ninguém sabe 

dos amuletos dos outros; 

ninguém olha 

pelo avesso das mãos.

15.9.25

Um copo de canseira (das antigas)

Um cofre arrendado ao porteiro

a parola que se avinagra nos mentirosos

essa terrível mania de falar da vida dos outros

viver – como se fosse possível – a vida dos outros

o asfalto perene que se cola ao céu da boca

e acaba com a mudez das consoantes

as diatribes de que são vítimas

na pessoa de fantasmas bem oleados

ao frequentar a disciplina 

“princípios gerais da conspiração”.

Um nabo a tiracolo

(estou mesmo a falar do vegetal)

emagrecidos pela dieta exemplar

os lugares-tenentes assobiam para dentro

à passagem de uma mulher escultural

agora são proibidos os piropos

foram extintos os piropos

a bem da antítese da masculinidade tóxica.

Amanhã

quando vierem os operários da metalurgia

vais tirar o modelo das fardas;

pode ser o futuro último grito da moda

antes que a moda emudeça de vez.

Injustiças documentadas (589)

Ao nono dia 

tirou um curso intensivo 

sobre como passar 

dos atos às intenções.

#4206

Pela cara do dia 

o sangue está em vias 

de se tornar lava.

14.9.25

#4205

O rufia 

forrado pela ira 

entontece a noite deserta.

13.9.25

#4204

A fama 

é sempre decantada 

pela boca dos outros.

12.9.25

Desenvelhecimento

O piano amortece nas teclas trocadas

e nós mentimos à idade

boémios encartados

no povoar dos lugares pródigos.

Não deixamos

que os adiamentos falem mais alto.

Passamos uma rasteira ao tempo tirano

e acabamos a rir 

como se não houvesse outro verbo.

Somos o nome da cidade 

a esquecer a vergonha mortífera.

Injustiças documentadas (588)

Manual de instruções 

do peripatético pastor das massas:*

o ridículo

nem mata nem mói.

 

*[No dia em que é capa do DN a primeira sondagem com o Chega à frente das intenções de voto]

#4203

Cá nos arranjamos 

entre o ódio profissional 

e as cicatrizes da indiferença.

11.9.25

Injustiças documentadas (587)

Ninguém perguntou ao corço

se quer participar no carnaval.

 

[Laivos de antropocentrismo]

#4202

Estremunhados 

os olhos incendeiam 

o dia.

10.9.25

Parque de estacionamento

Desta janela

desenhamos a paisagem.

É a nossa feitoria

como se a história tivesse parado

e os rios habilitassem as estrofes cheias.

As mãos dão nomes aos lugares

numa alquimia que cobre de ouro

as veias animadas com o vagar do tempo.

Atravessamos o luar tingido:

é nas costas do medo 

que descobrimos o segredo.

#4201

As rijas penas 

sofrem-se 

no vagar da angústia.

9.9.25

Ciência, política

Os países 

não têm biografia.

 

As pessoas

não têm bandeira.

 

As almas 

não têm custódia.

Injustiças documentadas (586)

Excelso, 

ou o dantes chamado

Celso.

#4200

Atiro-me ao mundo, 

descarnado, 

e não sei bem 

se é o mundo insaciável 

ou se sou eu.

8.9.25

Palavra de desonra

Um aformoseado ramo de cheiros

coloniza o quarto

a centelha acende-se na fruição das mãos

mesmo que estejam às escuras os olhos

mesmo que pendidos amanheçam os dias

não são as convulsões averbadas pelos pesadelos

a desfazer os propósitos

e o reino não fica pária. 

 

Amanhã

começo no dorso da manhã

e sigo por aí dentro

até ser o imperador ilibado

o poeta sem franquia

que não desiste

não desiste

e do dia 

faz o seu trono imorredoiro. 

#4199

Os gomos da esperança 

esmagam-se 

contra a boca insaciável. 

O seu sumo promitente apetece 

até aos deuses.

Injustiças documentadas (585)

Os que têm mãos pequenas 

são apátridas da bondade.

7.9.25

Injustiças documentadas (584)

Se tivesse cara 

de muitos amigos 

precisava de um cofre.

Injustiças documentadas (583)

Um peixe 

dentro da água, 

comme il faut.

#4198

Os destroços por dentro 

devidamente escondidos: 

a angústia não quer saber 

da indulgência.

6.9.25

#4197

Lançou uma OPA 

às ideias alheias. 

À falta de originalidade 

disse upa, upa.

5.9.25

#4196

Estas cordas puídas 

analfabetas 

que confortam o sangue 

em convulsão.

4.9.25

Injustiças documentadas (582)

Mostrada a mostarda 

o nariz fez-se hipérbole. 

#4195

Se à agua 

destinares a mágoa 

saberás que ela não magoa.

3.9.25

Injustiças documentadas (581)

Apenas 

as penas 

a penas tantas

e apequenas almas muitas.