17.10.25

Manifesto contra as métricas

Alguém disse:

os lamentos deviam passar pela balança

para sabermos quanto tempo levam

a curar.

Outros propuseram:

não se esqueçam da fita métrica

que toma as medidas da angústia

para sabermos das horas por que

desandamos.

 

Pelo silêncio dos demais

dir-se-ia

que não alinham

nos modismos das convenções

e preferem

a incaracterística anomia das métricas;

recomendam esta austeridade 

como critério

para ao menos fingir

que os malefícios que entortam os dias

são encomendados a uma anestesia geral.

Injustiças documentadas (604)

Na sede própria 

não se bebe 

água alheia. 

#4238

Arranjamos metáforas frenéticas 

somos, 

talvez, 

fugitivos dos sentidos.

16.10.25

A cidade diferente

Às vezes

povoava a cidade

com as cores do meu sorriso. 

Enfeitava-a com os dedos desassisados

ela precisava de desarrumação

esconjurava as caricaturas andantes

jurava então um despojamento freático

virada do avesso 

até ser cais dos pássaros itinerantes. 

E a cidade mudava de rosto

todos os dias

como se as ruas mudassem de lugar

ou sem mudarem de lugar

mudassem só de nome

vomitando o cimento inerte

amordaçando 

os procuradores dos bons costumes

naufragados num rio sem paradeiro. 

Os que juravam orfandade

Sitiados pela metamorfose da cidade

condenados a serem nómadas 

sem saírem do lugar

arrepiados pela contrafação de si mesmos

limitavam-se a bolçar o silêncio arrependido. 

Injustiças documentadas (603)

No fim 

de um concurso de ideias 

ficas 

com um curso de ideias.

#4237

Por um fio 

a boca fugidia 

a loucura adiada.

15.10.25

Manual de instruções para corromper o medo

De dia

reinou o eclipse; 

à noite 

dominou uma versão remendada 

de um vulto qualquer,

o espantalho menor

numa litania silvestre.

Até que a noite 

fosse despojada do negrume

e todos as personagens temíveis

ao sono se deitassem.

#4236

Dobro a noite 

a escuridão 

não deixa de segredar

segredos improváveis.

14.10.25

Cerimonial

No vagar das luas demoradas

chamo pelo teu nome. 

Espero

na empreitada de generais sem arsenal

os braços nus;

 

eis a herança que deixo

para memória futura. 

 

Escolho os baldios como pátria

prefiro às cidades onde 

puídas 

habitam as pessoas que jogam ao acaso

e se perdem num labirinto de incenso

atiradas à sua decadência. 

 

Pelos ombros da tarde

vigio as janelas arrumadas

que esperam pelo ocaso. 

 

Não pedimos lume à noite

as ramagens adormeceram sob os auspícios

do vento entretanto omisso. 

 

Digo o teu nome

e o teu rosto

o teu corpo dádiva

sobem ao promontório destemido

e as estrofes vulneráveis

tornam-se o idioma que nos faz falar.

#4235

É este desembaraço 

o vento que leva o rosto livre 

o silêncio emudecido pelo avesso 

o apogeu sem fronteiras. 

13.10.25

Benefício da dúvida

Falsete no avesso de um dia arrefecido

os escombros ainda válidos

murmuram nos ouvidos não precatados.

O vinho anestesia o sangue: 

é disso que precisa

uma providência cautelar ao dia constante

como se atrás viesse uma espada apurada

e o sangue se derramasse nas provetas do medo.

O mosto ainda quente alisa o chão sinuoso

e da pele tingida sobram as pétalas matinais

estrofes avivadas nas tatuagens sem sono.

Da hibernação voluntária

amadurece o desamanhã que importa:

um forte tumulto abraçado à carne suada.

#4234

Perder devia ser banido 

pela bravura de ir a jogo.

12.10.25

#4233

Os espantalhos 

não contam estórias

tanta a atalaia em que se adornam.

11.10.25

Injustiças documentadas (602)

Não sei como explicar:

quando leio bancarrota 

vem à rima Aljubarrota.

#4232

Um sabre propedêutico 

a descer sobre a indigência atrevida 

para dela se dizer 

que está em vias de extinção.

10.10.25

Injustiças documentadas (601)

Preso político.

Preso, político.

#4231

Somos a fortuna 

dedicada a um ouro postiço, 

um fausto manto de ilusões.

9.10.25

Cúmplice

Arranco as páginas

como os dedos se emprestam ao afago. 

Revejo nos lábios 

a usura dos corpos extáticos

a água por dentro

a salivar numa corrida desenfreada. 

Insisto 

na redenção pelo silêncio

nesta habilitação de palavras intuídas

palavras adivinhadas no estuário amanhecido

e na glosa do dia entronizado.

Trago à tua mão desamparada

o destino havido na desautorização da angústia. 

Depois

se formos ao lado do sortilégio

não somos reféns do medo

e sabemos

que a madrugada se demora 

enquanto adivinharmos o corpo cúmplice

que se deita ao lado.

#4230

Já o braço esquerdo, 

o pobre braço esquerdo, 

é o patinho feio 

da anatomia humana.

8.10.25

Injustiças documentadas (600)

Um trunfo 

não é 

um triunfo.

#4229

Só aceito medalhas 

se forem devidas 

por mau comportamento.

7.10.25

Miradouro sem escala

Ser asceta

causa umas dores lancinantes

dantes é que o pio dos dias era viável

e todavia

por voluntária corrupção

desabitei os hábitos estroinas

desabituei-me de distribuir impropérios avulsos

e de amanhecer com a cabeça virada do avesso

como se o norte fosse sul

a manhã noite funda

e de dia houvesse lua a sondar os poemas

 

(amadores,

como este)

 

e no fundo

as mãos descessem para apalpar o céu. 

 

Assim passam os dias

no exílio necessário

eu

nem metade do que fui

aspiração a ser todo e outro tanto

quando a mão se deita ao elixir prometido

a menos

que as promessas sem paradeiro

sejam um logro

e eu

pacientemente

vá mesmo a caminho 

da decadência.

#4228

Dispensáveis, 

os oráculos teimavam 

na indistinta arte do impossível.

6.10.25

Medalha de bronze

A gabardina enjoada 

percebe o sibilar das marmotas.

 

A corda estilhaça-se 

ao ser atropelada pelo navio.

Depois da noite, 

as juras de véspera são testadas.

Assim como as aves murmuram,

como se fossem

ancilares motores de combustão

no processo de aquecimento, 

balbuciando sílabas errantes.

 

Se ainda for a tempo

prometo mostrar o estirador

de onde as ideias fogem em pânico.

#4227

A encenação, 

quando sai dos palcos, 

consome-se em fingimento 

e tropeça na mentira.

5.10.25

Injustiças documentadas (599)

A política da força 

é a política da farsa.

 

[Tentativa de geopolítica]

#4226

Os escrúpulos 

(no plural, para avivar)

voavam como aves de migração

irradiando lugares tão díspares.

4.10.25

Arroz de graúdos

Hoje é dia de pleonasmos. 

As citações aformoseiam as frases feitas. 

Os ogres saem à rua 

disfarçados de emblemáticas figuras

cativando a admiração dos ingénuos

que também saíram à rua. 

Hoje também é dia de estultícia;

quem pode dispensar um módico

de estultícia

para afinar a bússola por que se comanda?

Afinal

hoje é dia do que quisermos que seja

na adoração da liberdade 

– mas daquela que não tem fronteiras. 

À noite

diremos que há contas por acertar. 

Mas isso fica

para um dia sucessivo

à escolha da nossa vontade.

#4225

No topo da manhã 

a maré desfaz-se 

na pele desmatada.

3.10.25

Outono à espera

A sombra que se acende na pele

transgride o sono. 

Murmuro um punhado de palavras

e elas embaciam o remorso. 

Agora somos nós 

a nadar entre a angústia que soubemos gastar. 

Agora

somos nós

apenas

no domínio dos nossos olhos. 

Até adormecermos 

e em nós transfigurarmos os sonhos

o idioma que só nós 

falamos.