24.10.25

Marco

Cortamos as palavras em dois

o número tangente de que somos imagem. 

Subimos a noite desimpedida

no ecoar das luzes que falam no nosso sangue,

a atalaia aos mundos profundos

uma simples mão pousada na outra

depondo o outubro fecundo.

#4245

Contem 

os metros do dia 

cada milímetro de lágrima vertida 

os quilos de angústia por decifrar.

23.10.25

Amanhecido

Seus

os olhos amanhecidos

como se aos céus fossem

e os lençóis amortalhados

a metamorfose de uma trincheira

onde o único arsenal admitido

é dos corpos que falam com o desejo. 

#4244

Sonhou que era astronauta 

e que do espaço 

viu um revólver a sequestrar a Terra.

22.10.25

Um quilo não pesa um quilo

Desta matéria feito

viro o dia do avesso

e não encontro as costuras 

– o fundo falso tirou ao acaso

um sortilégio. 

As flores mudam o campo

que deixa de estar mudo

ecoando o seu peito farto

pela voz centrípeta das flores. 

No meio da ponte

parece que só há 

o rio sobranceiro ao precipício

a consumição das tonturas. 

Digo:

 

é nas ruas onde o medo se emaranha

que somos além do que intuímos

aproveitando cada braçada 

para amealhar mais gramas 

para a existência inquieta. 

 

Dizem-me 

para não dar atenção ao tempo

para abandonar o corpo aos espíritos que adejam

e eu

teimosamente

respiro o vento cortante 

aparo o sol com os dedos encadeados

sulco o dia vívido 

nos labirintos que me ocupam

e deixo à memória futura

o encantamento escondido

tantas vezes obliterado

o encantamento que se acanha 

nos provérbios gastos pela usura

na conspiração que teço

só para ficar longe da entronização. 

 

Desocupo as montanhas 

que me separam do mar;

afugento as sílabas cortadas

as passagens de nível tão desejadas

pelos aspirantes a subir de degrau

que o estatuto não me deixa enamorado

e não preciso

já nesta idade não jovem

de sentir o regaço 

de todos os que se candidatem ao meu amparo. 

 

Prefiro as coisas na sua lhaneza

os dias sem vestígios de sua memória

o beijo de umas mãos estrelares

os vícios sem redenção

um lugar apurado na pequenez dos lugares

só para ter a companhia 

dos exilados de todas as estirpes. 

 

Fujo das luzes maçónicas

das suas malsãs divisas

e ainda mais

de quem se aliste para o infausto

da condecoração. 

Tiro ao acaso um número:

 

já não me lembro qual foi

mas era melhor do que o que consta

no rodapé do dia.

#4243

Governas por acrónimos

vai-se a ver

és poupado e austero.

21.10.25

Dos nomes outros

Destemido

o invulgar calar

ante a intransigente erupção. 

A escolha

tem aval dos penhores

as ávidas sílabas

que atropelam as frases. 

Não evaporo

os medos estilhaçados

nos ramos quebrados 

à mercê 

do vento que foge do norte. 

Um parágrafo

um parágrafo derradeiro

a estrofe liminar levita entre o embaraço:

empresto a assinatura dos nomes outros.

#4242

Um pacto 

sem servidão;

a muralha

por desfazer.

20.10.25

Nevoeiro limítrofe

As assoalhadas que sejam

não tirem saúde à aorta

nem apetite

que desenha a gula do futuro.

 

Por mal me desenharem

ando por aqui

mortiço

ou apenas caveado

nesta mentira

de que se celebra

assim tão incorrigível

misantropo.

 

Se o nevoeiro

tirasse as medidas

pela cor do meu sangue

ficava ainda um pouco mais 

cerrado.

Injustiças documentadas (605)

Já alguém perguntou 

nessas guerras que por aí há

qual é o preço de uma bomba 

atirada ao inimigo?

#4241

Mal o mel amolece 

mil são os mastros 

que amanhecem.

19.10.25

#4240

Não menos diamante 

do que (n)os dias pretéritos

o corpo atira-se ao porvir 

com uma febre inaugural.

18.10.25

#4239

Hoje 

as pessoas são 

anti-coisas de mais. 

É um peso que se arqueia 

nas costas dos outros.

17.10.25

Manifesto contra as métricas

Alguém disse:

os lamentos deviam passar pela balança

para sabermos quanto tempo levam

a curar.

Outros propuseram:

não se esqueçam da fita métrica

que toma as medidas da angústia

para sabermos das horas por que

desandamos.

 

Pelo silêncio dos demais

dir-se-ia

que não alinham

nos modismos das convenções

e preferem

a incaracterística anomia das métricas;

recomendam esta austeridade 

como critério

para ao menos fingir

que os malefícios que entortam os dias

são encomendados a uma anestesia geral.

Injustiças documentadas (604)

Na sede própria 

não se bebe 

água alheia. 

#4238

Arranjamos metáforas frenéticas 

somos, 

talvez, 

fugitivos dos sentidos.

16.10.25

A cidade diferente

Às vezes

povoava a cidade

com as cores do meu sorriso. 

Enfeitava-a com os dedos desassisados

ela precisava de desarrumação

esconjurava as caricaturas andantes

jurava então um despojamento freático

virada do avesso 

até ser cais dos pássaros itinerantes. 

E a cidade mudava de rosto

todos os dias

como se as ruas mudassem de lugar

ou sem mudarem de lugar

mudassem só de nome

vomitando o cimento inerte

amordaçando 

os procuradores dos bons costumes

naufragados num rio sem paradeiro. 

Os que juravam orfandade

Sitiados pela metamorfose da cidade

condenados a serem nómadas 

sem saírem do lugar

arrepiados pela contrafação de si mesmos

limitavam-se a bolçar o silêncio arrependido. 

Injustiças documentadas (603)

No fim 

de um concurso de ideias 

ficas 

com um curso de ideias.

#4237

Por um fio 

a boca fugidia 

a loucura adiada.

15.10.25

Manual de instruções para corromper o medo

De dia

reinou o eclipse; 

à noite 

dominou uma versão remendada 

de um vulto qualquer,

o espantalho menor

numa litania silvestre.

Até que a noite 

fosse despojada do negrume

e todos as personagens temíveis

ao sono se deitassem.

#4236

Dobro a noite 

a escuridão 

não deixa de segredar

segredos improváveis.

14.10.25

Cerimonial

No vagar das luas demoradas

chamo pelo teu nome. 

Espero

na empreitada de generais sem arsenal

os braços nus;

 

eis a herança que deixo

para memória futura. 

 

Escolho os baldios como pátria

prefiro às cidades onde 

puídas 

habitam as pessoas que jogam ao acaso

e se perdem num labirinto de incenso

atiradas à sua decadência. 

 

Pelos ombros da tarde

vigio as janelas arrumadas

que esperam pelo ocaso. 

 

Não pedimos lume à noite

as ramagens adormeceram sob os auspícios

do vento entretanto omisso. 

 

Digo o teu nome

e o teu rosto

o teu corpo dádiva

sobem ao promontório destemido

e as estrofes vulneráveis

tornam-se o idioma que nos faz falar.

#4235

É este desembaraço 

o vento que leva o rosto livre 

o silêncio emudecido pelo avesso 

o apogeu sem fronteiras. 

13.10.25

Benefício da dúvida

Falsete no avesso de um dia arrefecido

os escombros ainda válidos

murmuram nos ouvidos não precatados.

O vinho anestesia o sangue: 

é disso que precisa

uma providência cautelar ao dia constante

como se atrás viesse uma espada apurada

e o sangue se derramasse nas provetas do medo.

O mosto ainda quente alisa o chão sinuoso

e da pele tingida sobram as pétalas matinais

estrofes avivadas nas tatuagens sem sono.

Da hibernação voluntária

amadurece o desamanhã que importa:

um forte tumulto abraçado à carne suada.

#4234

Perder devia ser banido 

pela bravura de ir a jogo.

12.10.25

#4233

Os espantalhos 

não contam estórias

tanta a atalaia em que se adornam.

11.10.25

Injustiças documentadas (602)

Não sei como explicar:

quando leio bancarrota 

vem à rima Aljubarrota.

#4232

Um sabre propedêutico 

a descer sobre a indigência atrevida 

para dela se dizer 

que está em vias de extinção.

10.10.25

Injustiças documentadas (601)

Preso político.

Preso, político.

#4231

Somos a fortuna 

dedicada a um ouro postiço, 

um fausto manto de ilusões.