23.3.16

Menor denominador comum

Ao menos:

a fogueira intemporal
onde crepitam os ossos insaciáveis;

os olhos desimpedidos
depurando os teimosos nevoeiros matinais;

uma procissão de espantalhos
arrumando livros perdidos no chão;

gatos vadios passeiam
arriscando a afoita liberdade singular;

a incógnita na parede
remexendo a passividade dos dias;

o desassossego das perguntas
à falta de outro passatempo;

uma cotovia ensonada
murmurando o canto das divindades;

o sargaço acostado
emprestando manto espesso ao mar;

a roda-viva do outono
deitando-se nas contas dos burgueses;

o pesar do céu
em sintonia com o chão negro;

o alimento lauto
deitando sustento na fome avassaladora.

Ao menos:

um módico qualquer
destroçando a quotidiana frivolidade mórbida.


#12

Páginas assombradas
pelo vulto da estultícia
decaem no sono carregado,
já fúnebres.


22.3.16

Diadema

O homem pega num archote
e cospe chamas à noite imorredoira.

Percorre uma miríade de lugares,
subterrâneos lúgubres da cidade
e praias exóticas onde um céu encontra cais.

O homem vê baleias azuis
pássaros com três asas
um livro de poemas de cinco palavras
nuvens baças que tutelam as cores.

No apogeu
tira o revólver do coldre
fita-o demoradamente
e, num esgar de raiva,
deita-o ao rio lamacento e torrencial.

Tece uma tapeçaria abrasonada
à falta de pergaminhos a preceito;
transfigurado, mete-se em dedais
e agiliza o tapete encomendado.

À pálida luz
jura ter sido socorrido
por uma aurora boreal.

De nada serviu dizerem
que o seu lugar era um equador imutável.