28.4.17

Fait accompli

Um fio escasso
entre os nós do outono
e o mar altivo.

A posteridade esquecida
no umbral desaproveitado.

E nós
os penhores da graça do mundo
capazes dos sortilégios inteiros
na indiferença do que foi gasto.

As mãos levantam a parede
e debaixo do musgo envelhecido
reveem os mandamentos avoengos.

A literatura
abundante
conserva os ramos infantes.

Daqui ao outono
no cais vazio
e sem cargueiros na maré
sobejam as trovoadas anciãs.

27.4.17

Parafernália 

Quero mais, quero mais!
Inúmeras possibilidades:
o menino e a sobremesa
o lobo e as presas
o sal e o mar
o vadio e a insubmissão
o poltrão e o sono
o cleptomaníaco e o alheio
a chuva e as nuvens
o corpo e o alimento
(de toda a sorte)
o poeta e a música
o corpo e a indumentária
o pé e o sapato
a conferência e a coerência
a prova e a contraprova
a estátua e a personalidade
a lua e o sortilégio
a inspiração e o vinho
as mãos e outras mãos
a razão e o compasso
o tear e a renúncia
o inverno e a neve
a ninfomaníaca
a arte e o acaso
o sexo e o sexo
o miradouro e as asas
o jogo e a miragem
a cultura e os olhos
a parede e a janela
a janela e a alvorada
a alvorada e o desejo
o desejo e a transcendência
a transcendência e o mar
o mar e a distância
a distância e o pedido
o pedido e a humildade
a humildade e a previsão
a previsão e o passado
o passado e o oráculo
o oráculo e a penumbra
a penumbra e os sonhos
os sonhos e o resto.

#191

Mandaram-me foder.
Versado no teor
(e seu zelador)
cuidei
com diligência e razoável obediência
de corresponder à ordenança.

26.4.17

#190

Indulgência rarefeita
em janela desabotoada
arranjou sete vidas
em paga proporcional.

Sismógrafo 

Pretende-se que as bermas do vulcão
sejam ancoradouros
dos prometidos ao precipício. 
Não tenho
entre as certezas assim configuradas
que os tremores que remexem alicerces
sejam sinais de coisa alguma. 
Dou-me ao vento que trespassa a carne
em convulsões sem apresto
no invólucro frágil onde se acomete
o corpo. 
Tudo treme
os olhos amaciam-se por dentro do sangue.
Insinua-se a rendição
que pesa sobre o peso do corpo
por sua vez
arqueado sobre o jugo implacável do tempo
acareado contra o penhor diametral
da luz soturna. 
E deixo-me
sob o olvido imperturbável
sentado no alpendre estimado
à espera do fim do abalo telúrico. 
Pedindo meças
ao sismógrafo
que tira as medidas que me dão
a medida que é aferição minha. 

25.4.17

#189

Caros concidadãos:
esbracejem
desde o leito
da indiferença.

24.4.17

Metafísica desossada

Os deuses
no tempo em que os havia
andavam nus
com as 
(a julgar pelos quadros dos pintores clássicos)
derruídas protuberâncias em exposição
e ninguém protestava contra a indecência. 
Dir-se-ia
(se a filosofia não atraiçoa)
que aos deuses tudo era caucionado
até a impudicícia da nudez
até dedos erguidos de deus para deus
pressagiando terrífico gosto pelo sexo igual. 
Ou então
a vergonha de hoje
quando a nudez dos corpos
merece agravo do pudor instituído
é uma cortina que esconde
pessoais agravos que fermentam
mal resolvidas interiores demandas
(em linguagem decifrada:
as pessoas
têm ocultada procura por corpos outros
por pudor dos corpos próprios).
Ou então
os deuses são uma versão disfarçada
dos terrenos homens,
sofisticação ardilosa da imaginação
projetada numa tela
em estátuas mirificas
em tetos de capelas projetados
na infértil imaginação
de gente despovoada de critério próprio.
Em falta está
a imperativa falta de humildade
para as pessoas se considerarem
deusas de si mesmas.
O que está em falta
é um deus privativo em cada indivíduo. 
Ou então
decretar-se
de uma vez por todas
a falência dos deuses
e da própria ideia de deus. 

#188

Um tempero imoderado
é tempero loquaz
(desmentida a hipótese da antítese). 

23.4.17

Espelhos desfocados

Empreitada para o dia:
derreter os icónicos faraós
os que se excitam
só de se verem num espelho
ao mais leve toque de uma luva lima.
Continuação da empreitada do dia:
no sarcófago dos panegíricos
ensaiar uma caldeirada de simulacros
palavras arrevesadas
que se pareçam com elogios
mas soem a escarnecimento.
Aplaudir
demoradamente
enfaticamente
convictamente
para os icónicos faraós
se despojarem da carniça
e hastearem a bandeira da sobredotação.
Aprontar a empreitada do dia:
continuar a aplaudir
fazendo de conta
através da mão do sorriso falaz
o demiúrgico ato
cantando
(em sendo preciso)
o refrão daquela música:
“I wanna be adored”.

22.4.17

Zona franca

Os óculos
sobre o mundo.
Embaciados.
O estremecimento
no limiar da alvorada.
Sem a lua franca.
As perguntas desfavoráveis
sobre as cores.
Um acordo sem palavras.
Emaranhado.
No cultivo das horas a mais
sem o destempero da pressa.
Um apanhado
da geografia ampla.
Olhos ávidos.
Destilados.

21.4.17

Vazio 

Os nomes sobrepostos,
encavalitados numa escada gasta,
no confisco das almas
desistindo. 
Caminham arqueados
deitados no cansaço torpe
fabricado pelos algozes que obliteraram o sol. 
Olham para o céu
e as nuvens densas são como grades
que separam o lugar de onde estão
da ampla liberdade
embaciada no avesso do sol. 
Os prantos deixam o chão enlameado. 
A longa estrada,
uma reta interminável que esconde o horizonte,
esbarra no vento azedo. 
Os nomes sobrepostos
numa amálgama que desaprova a condição
não sabem o sorriso
e bebem na justaposição dos vinhos apodrecidos,
que já nem sequer embriagam. 
(Até essa esperança foi sanada.)

#187

Culpado da erudição atordoante 
ensinava ignorância amiúde
ocultada na febre da altivez. 

20.4.17

Duelo

O almocreve cismado
desconfia da trovoada;
resiste
desfila a besta de carga
no corso risível a destempo. 
Na esquina temperada,
onde joias não há,
desafiou o espantalho. 
O espantalho tinha vida,
vida própria;
era um espantalho fenómeno. 
(Por uma vez
o almocreve achou possível
o Pinóquio.)
Dali sairia duelo
no fiel do mais bestunto. 
Os dois ambicionavam a coroa. 
Faltava combinar
as armas por terçar. 
O almocreve escolheu 
a pontiaguda pança. 
O espantalho
a roda viva da dieta a eito. 
Assim como assim
só o almocreve precisava de mantimentos. 

#186

Virei página
nas palavras vertidas
em memória futura
e fiquei matéria viva da posteridade. 

19.4.17

#185

Precatam-se as sombras
que descem das nuvens plúmbeas:
não é hecatombe,
nem dilúvio
é a revivescência dos elementos.

Amanhã

O piano dedilhado no rumor manso
e as páginas que voam com a noite furtiva
sem convidar o desespero
sem evocar as malsãs esquinas do tempo
na admiração perene do que houver
por admirar
nem que seja pouco
nem que seja quase tudo.
Sentam-se os dedos no veludo da flor
e o mar plano chega para leito dos sonhos
no avesso do dia soalheiro
e do vento rebelde.
Às dúvidas
manda-se dizer que persistam:
não se encomenda mal atilado
se interrogações permanecerem acesas
sem refutações ensaiadas.
A gente na rua
prova o esteio impecável do planeta
sem contemplação 
com os que encontram nos outros
o diabo em pessoa.

Não tem importância.

Desajeitam-se os cabelos sem penteado
coíbe-se o estremunhar dos olhos
e as múltiplas facetas da alma 
erguem-se no altar
onde,
impantes,
os vivedores compulsivos
se consagram
a si e à vida
no palco imenso onde o público
é imperador.
Os estouvados precursores do desconhecido
ensinam estilos avulsos
esboçam estrofes que atestam memórias
sem soçobrar aos vulcões adormecidos
sem deixar de mestiçar o que não é par.

18.4.17

#184

Falava-se de pecados.
Era pecado pecar.
Recado do sacerdote, desde o púlpito.
O sacerdote gostava de pornografia.
Pecado, era atirar a censura ao sacerdote.

Pontuação

Um . 
podia ser uma ,
a pausa semântica ditou o .
Se houvesse enredo ao meio
e a oração se estendesse
exigir-se-ia um ;
ou talvez um –
se a estética da oração
não ditasse um ().
Na báscula gramatical
haja ao menos o brio
(ou a destreza no uso das regras)
para não pôr as ,, fora do sítio. 

17.4.17

#183

Espreita a escotilha
os olhos do avesso
e recolhe nas mãos
os segredos guardados
nas gotículas que se desprendem.