10.8.18

#683

Saciei a eternidade 
frémito devoluto 
espelho na sua totalidade
baço.

9.8.18

O imaculado impossível

O guia turística explica a virgem Maria,
a imaculada 
– sem pecado.
E entendo 
todas as insuficiências da espécie,
à partida
condenada ao seu malogro:
se a criação de cada espécime 
depende
de um ato cuja negação 
é a essência da pureza, 
da virgindade
de que exemplo é a imaculada de Maria,
ou Maria não representa a humanidade,
ou a humanidade,
que aprende a gostar de sexo às talhadas
como pressuposto da reprodução
(e, por consequência, 
das atividades extracurriculares),
é um erro de casting.

7.8.18

#682

Como pode
a mulher ser a serpente do homem
se o homem traz em si
a sua própria serpente?

(Depois de uma dança do ventre em Uhçisar, Turquia, com inspiração em Adão e Eva)

5.8.18

A pira das divindades

Num convés adormecido
os raios da manhã sussurram
versos sem atalaia. 
No miradouro esperado
duas estátuas sondam o dia
e os viandantes jogam no catálogo
as melhores cores justapostas
a corda justa ao corpo
antepondo o milagre a destempo. 
Os confettis chovem ao desembaraço 
enxugando os rostos suados:
sem asas por perto
ninguém consegue voar. 
Não é preciso. 
Levitam
como se houvessem açambarcado a pureza
e no púlpito de si mesmas
se imaginassem reis e rainhas. 
O espaço alvar
onde as lagoas aprendem o entardecer
na luz desmaiada que nelas se retrata
é o templo onde se engalanam
no repasto sem mandamentos
os que mandam nos areópagos. 
Já não conta a fuligem
deixada em escombros.

#681

Lambia as botas (é certo).
Temperadas com aromáticas ervas
e a proverbial humilhação (disfarçada).

4.8.18

#680

E eu que medo também tenho
de medo não ter
na hora de medo ter.

3.8.18

A.M. (not P.M.)

O amanhecer não sitiado
uma convulsão estrepitosa
a razia da modorra.
Afeiçoa-se o corpo
afeiçoa-se o raciocínio
afeiçoa-se o verbo ao feixe depois
e escolho a pista oculta
para desenhar a lua vespertina.
Confere a cara com a coroa:
o lado lunar é o avesso de um avesso
e o desmodo das palavras atraiçoadas
emudece o sentido das palavras.
Talvez sejam farsantes;
talvez abjurem o lugar-comum
as paredes estreitas por onde correm;
talvez os modos se sopesem
contra as barcaças podres
as bocas desdentadas de pescadores idosos
ou os modos artificiais 
dos indigentes da 
(assim chamada)
“alta sociedade”.
Talvez seja altura
de abdicar de todos os talvez:
e, sem a timorata cautela,
estrear a não diplomática secura de termos
sem medo de não agradar
sem medo de digladiar motivos
sem medo de poder ser aprisionado
no templário dos párias.
Para depois
poder honrar a manhã
inaugurada com as honras devidas às manhãs
como a barricada onde se estiolam os meãos
e toma tamanho
o desassombro que desponta na alvorada.

#679

Dá-lhe com a alma” 
(de acordo com a música).
E apercebo-me 
da falta generalizada
de lhe darmos com a alma.

2.8.18

Refinaria

Abreviatura
– as palavras em dieta.
Um poço:
diadema de desencontros. 
Maus, os modos da menina:
um banho de maneiras. 
Uma página amarrotada 
– as rugas do contratempo.
A lupa a tiracolo:
contra a miopia das ideias. 
O texto rasurado 
– selo da humilde fragilidade.
A chuva metódica:
planisfério dissecado. 
As frases embaciadas 
– e a paciência açambarcada.
O rosto decaído:
a fortificante água do mar.
A matéria impura 
– a refinaria a preceito.
E o que é refinar
(de re-finar)
se não a morte repetida?

(A refinaria é uma mentira.)

#678

Convoco o olhar espartano
no imperativo
das tentações dissolvidas.

1.8.18

#677

Se me dessem um refrão
oxalá fosse oximoro.

Passaporte

Cobro o dobro da chama
na vaga inclinação das sobrancelhas
em seu desenho arqueado
púlpito das lágrimas não vertidas
conspiração encenada contra os sentidos
intuição sem regras.

Cubro com o corpo
a poeira afogueada no parapeito das sombras
sou caução
contra os tóxicos elementos
as marés sem freio
os olhares de reprovação
na maré-baixa da dissidência.

Custa apenas o módico repensar
nas redes tresmalhadas
(não importa)
válvula aberta para o ver que se não vê
para o dia sem calendário.

Caibo no logradouro sem limites
edil sem coroa
soldado sem disparar arma
pretendente ao vazio do sossego
(ou ao sossego do vazio,
ainda não decidi).

Na mealha do mar,
onde se encontram os ecos audíveis
dos capatazes dos sentimentos,
desabotoo a porta escondida
e desconfio
que tenho o mundo inteiro,
o mundo em minha querença,
a bordejar os meus pés.

#676

Sei
pelo silêncio do mar
do aroma apanágio da alma. 

31.7.18

#675

Cavalo come rainha:
a zoofilia pode ser no xadrez.

Saldos

Terreiro minado
das mercancias em saldo.

Não têm soldo capaz
os inebriados
os contumazes desaprendizes
seguindo a centelha ardilosa
antes de desaguarem no poço fundo
onde se empenham
(literalmente).

Salda-se tudo:
até a honra
que as honrarias 
são funestas imprecisões sem serventia
estrofes sabotadas no sofá gasto
e as mercancias a que não chega o soldo
convocam a creditícia lamúria.

Algumas mentes avençadas
tudo entenderam em devido tempo:
até os mais previdentes
reféns se põem da conspiração 
dos endinheirados:
o crédito é uma droga dura
o martelo pneumático 
que percute sobre as almas deslumbradas
com o preço da esvaziada alma
nas mãos dos pérfidos credores.

Algumas mentes avençadas
assim avisam
(sem cuidarem de aliviar 
o registo de interesses
em ocultação de suas avenças particulares).

#674

Auferir o infinito mapa nas mãos
enquanto corre o sonho
em seu fado ilimitado.

30.7.18

Autoteatro

Desossado
fiz o papel de mim
nesta peça sem preâmbulo. 
Suei a carne viva
no corrimão da estufa outonal
sem conselhos de previsão
ou oráculos em fornos avivados.
Por dentro da espátula forçada
não soube dizer
se foi difícil o papel de mim mesmo:
exigi o desprendimento cautelar
a emulsão de mim no seu exterior
nos preparos desarranjados
em constante vociferação
contrariando a corrente do cais.
As vezes que admiti
ser a personagem de mim mesmo
foram as mesmas
que adivinhei ser sacerdote
envergar uma sotaina e pregar mandamentos
ou a farda estiolada
e pregar em paredes nuas.
À saída do palco
dir-se-ia vir detido pela diferença.
Fazer de mim
contra os estilhaços de um espelho
(estes eram os preparos do palco
entre a fuligem noturna
e uma audiência em silêncio 
– ou, por vício de escuridão, 
de audiência sem audiência)
foi como tirar uma fotografia do avesso
e dar ao tabuleiro o mesmo jogo.
Folgo em saber
que não havia vivalma na audiência.

#673

No azulejo gasto
selo o inconfundível lugar,
o umbral das histórias sem ermo.

29.7.18

#672

Escrevo
porque não sei
de matemática.

28.7.18

#671

Marquei a casa da partida
no dorso do mapa 
(com uma faca):
não espero pela casa da chegada.

Infinito

Nesta cordilheira de espaços
desarmadilho as palavras:
agora não têm véus
e nem os eclipses contumazes
as conseguem deter.
Considero as hipóteses;
de vez em quando
a esquadria do tempo
incomoda-se
com os tenentes da soberba.
Acauteladas as velas por desembainhar
sobram todas as hipóteses
jogadas no palco por inventar.

27.7.18

O outono foi invadido pelo inverno

O feixe sem véu
(crisálida promitente)
desfaz os escombros inviáveis.
O outonal frio
deixa tudo em suspenso
como se a aurora se demorasse
para além do ponto de congelação.
Amedrontados
(este frio veio a destempo)
os crisântemos entumecem
com as gotículas de gelo 
abraçadas a seus caules.
Hibernam.
A geada
vista ao longe
deitou-se sobre os campos
como se fosse seu manto branco
e não se vê jeito de se recolher
ao estado líquido:
um nevoeiro pusilânime
persiste no resto da manhã.
Os idosos não têm lembrança
de ser tão frio a destempo.
No outono com sabor a invernia
as latitudes foram trocadas
e em seu lugar desponta 
o clima descompassado.
Os idosos são porta-voz
do invulgar estado das coisas.
Os mais novos
metodicamente desconfiados
interrogam-se interiormente
se os mais velhos não caíram na desmemória
ou se eles próprios,
de mais novos serem 
e por a desatenção ser estrutural estado,
nunca deram atenção ao outono.

#670

Acordo. 
Uma multidão de dedos 
tateia o meu corpo 
como se fossem aranhas tentaculares.

26.7.18

Às de trunfo

Tenho o trunfo farto:
meia-dúzia de ameias
entrelaçadas no nevoeiro
onde se aninha o pensamento. 
– E de onde te antevês
congeminas as palavras servis?

Falo ao ouvido da manhã
na insonora estafeta 
que convida ao colóquio. 
– Não te sobram braçadas
nas algas pueris no dorso das ondas?

Ouço o murmúrio da chuva miúda
nas costas da atenção
enquanto os gatos se escondem
em muralhas de sono. 
– E não te é dado saber
dos capítulos sem páginas
da vetusta purificação na rima tardia? 

Abraço o tempo teimoso
na mirífica varanda
que ampara o precipício. 
– E se o vento atroz
conspirasse no pulcro entardecer
e fosse semente do caos?

Bordejo o rio seco
na angustiante paisagem estiada
sem a secura das interrogações
como passadeira inviável. 
– E lutas com as mãos cheias 
na aspiração da justiça sem medo?

Tenciono não jurar outra vez
nos meandros da memória bastarda
pela contemplação do tapete que me espera. 
– E consegues sentir
a turbulência a fiar o sono
os remendos de alma dilacerante
numa lamentação infecunda?

Desato os penhores
na demissão dos embaraços
que se alinhavam no estertor à volta. 
– E que razão fabricas
à razão das horas enfeitadas
com tão eloquente destrunfo?

#669

Sociedade contemporânea do fingimento:
um ninho de mitómanos.

25.7.18

#668

Ficávamos atónitos
quando a professora de francês 
esbravejava:
“nas minhas barbas!”.

Contagem líquida

Verto no lago sem nome
as dúvidas excedentes
como se o lago,
de tanta água conter,
precisasse de um acréscimo.
Esta é a gravata
que me aperta a carótida,
o nó górdio sem resposta.
O chão molhado
também recebe chuva
e não é por isso
que a chuva perde serventia.

#667

Deixo de acontecer
no penhor das chaves amorfas
enquanto o sol se emacia no céu abatido.

24.7.18

#666

The right side.
The write side.
The bright side.

Pólvora seca

Revejo 
o bolso esfarrapado
de onde caiu a vergonha.
Revejo
a farsa inteira
o mar sem cais por perto
os sonhos adulterados
as palavras erradas
o tempo sem modo
sem medida.
Revejo 
como se estivesse no cinema.
As ondas deitando-se
sobre meu rosto.
Na arquitetura sem regra
destronando as palavras
num desmodo a eito
no recanto lúgubre
onde foi temporada.
Luto por nada rever
nesta contemplação impróvida
não convocada
refém de uma sonsa recusa
em emparelhar o pretérito.
Revejo 
o que não quero
antes de à memória
se soerguerem as contundente lembranças.
Revejo 
o que a indomável vontade patrocina
como se as flores tivessem perdido cor
e no mar já não houvesse marés
e as palavras ficassem todas vazias
pungentemente sem sentido.
Perco-me 
num arquipélago
num arquipélago de um homem só
num arquipélago de que não há mapa
e não quero ser o tutor da cartografia
antes quero
que a matéria enquistada na poeira
seja desalinhada da memória.
Vejo ao longe
a linha do comboio
e fico à espera
horas e horas e horas 
que se fazem tempo adulto
e não passa nenhum comboio.
Talvez o sono
(adulterado)
precise de música
e de exorcizar mitos que nunca foram
para juntar os despojos nas mãos
fazendo semente a um lugar diferente.
As ondas deitam-se
sobre meu rosto 
– e eu continuamente seco.
Sem saber da justiça
do segredo dos gatos
de muitos idiomas
dos preparos da alma
do degredo dos inúteis
e das ciências muitas que não foram
apeadeiro.
Não tem importância.
Às perguntas
encomendo o ritual da insubmissão.
Prefiro assim:
a tempestade que desembainha o pensamento
no cadafalso das memórias
(se for preciso).
Até que as ondas se deitem
sobre meu rosto
e eu aprenda a ficar molhado.