4.1.19

Crepúsculo

A lava 
que provém das veias
dispensa o sono propedêutico
na imensa planície
onde a lua não chega a entrar.

A seiva
que destrava os muros
convoca o suor hasteado
na fogueira embainhada
onde os estouvados aprendem a ser.

A lava
que incensa as veias
não se consome em vão extravio.
É nutriente matricial da fogueira amena 
em intempestuosa combustão.

O cais norteado
das almas trespassadas.

#865

Quanto deste desterro
é exílio nos subúrbios 
do meu deslimite?

3.1.19

#864

Não guardo rebanhos.
Não guardo rancores.
Não guardo temores.

Recolhimento

Saciado no palco raso
recolho os contumazes, aleatórios rostos
no tumultuoso caudal da memória. 
De memória
não admito sequer os traços grossos
e os rostos decaem numa névoa fugaz. 
Nas varandas arqueadas sobre o fojo
perfumo as palavras com a pele
à espera da continência do amanhã. 
Sei que não posso esperar
pois o amanhã nidifica
no irrepreensível vazio que é a incerteza,
o tempo ainda ausente. 
Vejo 
como as duas medidas do tempo
se pressentem num sincrónico tear:
os rostos esquecidos rimam 
com a porvir de que não há memória. 
O trono vagou,
as divindades extintas no furor da inverdade. 
Cabe algo maior
no peito que abriga das intempéries:
uso a fita métrica 
e nem apesar de os números desmaiados
perco a noção da estultícia,
não vá ser colonizado por ela. 
Os rostos permanecem apenas
silhuetas,
um vago alpendre com as formas distorcidas
as palavras consumidas por um silêncio voraz
o esquecimento matricial emparedado
nos limites dos tempos ausentes. 
Sei ser esta desmedida,
o ousado destemor vindicado,
o embaixador ostentando o tridente
que adestra as marés embebidas no calendário. 
Antes assim. 
Talvez ainda não seja tarde
para aprender o que a teimosia recusa. 

#863

Havia vírgulas fora do sítio,
como quem tossica
engasgado com um contratempo.

2.1.19

Mundos

Não são precisos miradouros
para determos o altar do mundo.
Chegam
as pupilas dilatadas
na sofreguidão dos lugares tantos
um nomadismo intemporal
a voracidade com que trazemos
as paisagens ao peito
e as emolduramos 
no lauto caudal da memória
o património sem limites
na fortuna das nossas mãos.
Chegam
os lugares tantos
que fazemos nossas muralhas.

#862

O marinheiro de outros mares
era o estouvado corretor
de bolsas sem fundo.

1.1.19

#861

Dizia:
não ponho as mãos no fogo
pelo futuro
(não sei o que se ele arde).

Santana, hosana

Rudimentar
a alegoria;
o autêntico menino-guerreiro
é o pequeno insurgente de Varsóvia.
O resto
são toscas pinceladas
no rarefeito meio circense
onde o primus inter pares
excreta
e constantemente
a incontinência dos exauridos.
Paradoxalmente
o pequeno insurgente
foi de finados,
extemporâneo.
Ao contrário de outros,
os da diarreia verbal
da facúndia infecunda
os máximos agentes poluentes,
teimosamente insistentes
que resistem.
Dir-se-ia:
resistem a si mesmos
acima de tudo,
teste à indulgência dos demais.
Ao contrário
do pequeno insurgente de Varsóvia
não se lhes adivinha
um porvir com direito a estatuária.

#860

O eco púrpura
levanta o luar desmaiado
tomando a noite por reino. 

31.12.18

A matemática da loucura

Os loucos não erram
na sua aparente errância.
Devolve-se-lhes um caudal próprio:
o desinteresse 
pela demência do mundo
que os determina loucos. 
E pergunto-me:
se um demencial mundo
(disfarçado em seus impecáveis pergaminhos)
é legítimo
para deitar os loucos ao ostracismo. 
É dos livros e da matemática:
dois negativos 
um positivo somam. 
(Se admitirmos,
como julgo líquido conceder,
que duas loucuras arrostam 
sinais negativos;
outro seja o predicamento
e o pleito salda-se
pelo estilhaçar do cordão sanitário
em redor da loucura,
enfim normalizada.)

#859

Nomeia o fiel a jeito
este que te verte o peito
o verbo todo a preceito. 

30.12.18

#858

Estou por dentro dos teus sonhos
como tu és tutora dos meus. 

Moeda

Esta é a moeda
o aroma ouvido nas claves
o distinto chapéu como ornamento
o lauto jantar
um esboço de perfeição
(inacabado)
(inacabada)
a tentativa de superação
árvore centrípeta a exigir atenção
a estrofe tardia
o sonâmbulo terçar das armas
(circunspectas)
o grito lúgubre
os instintos sem nome
a convulsão adiada
o espectro do medo
(infecundo)
a lição sem palavras
o testamento sem morte
a lívida aura dos inocentes
a pena sem pena
(ergástula)
o gosto sem gasto
(não o gasto sem gosto)
a mão tremeluzente
o candeeiro apagado
a rua à procura de paradeiro
o salitre vertido nas casas litorais
os frutos não colhidos
(à espera da podridão)
o mapa desalinhado na véspera da moeda
(falta saber se boa). 

29.12.18

#857

Entre o dois de espadas
e a espada de Dâmocles 
que seja do diabo a escolha. 

28.12.18

#856

Ressentimento
não é o que vocês pensam:
é um sentimento
sentido em repetição.

27.12.18

Genealogia

A genealogia indiferente
raspa as arestas militantes
e revela o vazio dentro do vazio.

Súmula,
aquela música
de um minuto e quarenta e três segundos:

o impossível
é condensar o muito que se diga
num punhado de palavras.

Não há genealogia que o precate.

#855

À contraluz
a silhueta dissolvida
na sua verdade.

26.12.18

Sei

Sei
das lágrimas enxutas
na varanda sobranceira
ao mar. 
Sei
dos vultos
imersos na neblina tardia
de seus olhares vigilantes
rimando com a noite 
furtiva. 
Sei
da chave fundida
na pauta arcaica
de onde entoa o ciciar 
matinal. 
Sei
das marés adstringentes
no sopé do horizonte
por onde o olhar 
se projeta. 
Sei
da memória
que se desenha na posteridade
entre páginas e páginas 
por saber. 
Sei
de memória
as palavras desembainhadas
no santuário 
do desejo. 
Sei
do paradeiro 
dos penhores da paráfrase
hasteando os lenços humedecidos 
pelo orvalho. 
Sei
das noites sem sombras
no desembaraço dos fantasmas
na maresia que entra 
pelo postigo. 
Sei
das proezas vindicadas
por falsários sem remédio
peritos singulares 
na mitomania. 
Sei
dos oráculos sem rosto
as páginas caiadas em perfeita alvura
o ímpar relógio que dá as horas 
do futuro. 
Sei
das palavras que quero na boca
metáforas incindíveis
mostruários das profundezas 
da alma. 
Sei
dos lugares atapetados
dos equinócios sem portas por encerrar
do perímetro apetecível 
de um labirinto.
Sei
um módico
medida bastante
para sobre um algo ter 
ciência. 
E sei 
do que sei
sabendo do imperscrutável
que fica por saber.

#854

Na muralha da penumbra
ou na malha dos nenúfares
os segredos patentes à sindicância.

25.12.18

#853

Antecipo o litro no miradouro
sem esperar mel em forma de juros.

24.12.18

Rastreio

Emboscado
pelas mãos com salitre
uso a maresia
para bode expiatório.

Não cuido da redenção;
o cerco malsão
não se aceita sem causa próxima.

Das ondas conceptuais
retiro a centelha que preciso.

Ornamento o chapéu
com o desuso sem fartura
e torno ao lugar da partida
vestindo a alvura 
das sereias sem paradeiro.

#852

Simulação
com transparência
a todo o vapor.

23.12.18

Decadência

O estatutário medo:
a decadência
no corpo gasto
irremediável decadência
simulacro do que foi
o corpo gasto
e o golpe derradeiro que se demora
abrigando a agonia
a profunda, humilhante condição
pior do que o vegetativo estado:
a lucidez 
dá conta da decadência
um punhal fundo na carne
ensanguentando a alma
com o impossível devir.
Fosse deus uma existência
não caucionava a decadência dos corpos
em castigo soez
autêntica pena capital a repetir-se
um dia atrás do outro 
ecoando o medo no relógio sem horas.

#851

Não sei fazer previsões.
Essa é das minhas maiores virtudes.

22.12.18

Xadrez

A destilaria arcaica
repensa os modos 
– os imberbes na fila
à espera de conselho.
Não tem nada para dizer,
a destilaria.
Os imberbes,
deixados à sua sorte
no manejo das espadas
e o tabuleiro compõe-se de sangue
na matriz dos sacrificiais relógios
onde se admitem os corpos exangues.
Só então
já não imberbes
os sobreviventes estão a jeito
de serem jogados à prova. 

#850

O aconchego biológico:
a pele entretecida noutra pele.

21.12.18

Pólvora

Não é por motim
que ordeno o silêncio
interior.
As teias urdidas no gasto tear
cobram o seu preço 
e os tapetes violetas não chegam
para sossegar os medos.
A fogueira crepita
na viva combustão nutrida.
Olho para os contrafortes do sono
onde se balizam os limites do nada
e sirvo em cálice a saliva
os juros das palavras silenciadas.
Sei que a noite amedronta.
Sei que à noite
a solidão parece um gigante
as suas largas patas espezinhando
o fértil chão agora sem uso.
Não é por mim
que arvoro as estrofes hirsutas
e que contrato druidas sem rosto.
Não é por motim
que digo não.
Na acastelada sucessão de leis
desordenam-se os sacerdotes
por “inútil superveniência”.
A escadaria arde
num fogo brando, 
insistente:
a lógica ensina qualquer coisa
mas o motim
levou a memória.

#849

(Variante do #757)

Quem, em sua lucidez,
vai a correr atrás do prejuízo?
(A menos que seja para o liquidar.)

#848

(Da longanimidade)
Não é miopia:
é o nevoeiro
que embacia o olhar.