4.9.19

Pontos cardeais

Chego de olhar segado
que medram impostores 
– mas o que sei de fingimento?

(A não ser
os não dolosos fingimentos
em que se finge não ver
quem não se quer falar.)

Habilito com cortesia
quem desenha confiança 
– mas o que sei de fingimento?

(A não ser
os lucros disfarçados de dano
ou os danos transfigurados em lucro,
ou os dois por junto.)

Prometo juros certos
aos demandantes de contendas 
– mas o que sei de bélicas desaventuras?

(A não ser
as desabridas arengas
em epistolares provocações
com irritantes figurantes.)

Projeto uma casa santuário
aos que se recolhem em meu exílio 
– mas o que sei de arquitetura?

(A não ser
o rendilhado das palavras
a dedo escolhidas em estirador
de luminosa colheita.) 

Dou coutada aos sonhos,
que vejo utópicos e idealistas em barda 
– mas o que sei de miragens?

(A não ser
as miragens dos desertos
que nunca demandei
por antinomia de geografia.)

3.9.19

Almanaque

Sou o avesso das medidas
sentinela dos pesares sem nome
aríete das danças sem coreografia
um zénite.
Arrumo a areia sem dono
a mortificada alusão ao progresso
os dentes desalinhados
sem próteses a rimar.
Anoiteço no coro inadvertido
sobre a varanda quimera
devolvo as lágrimas aos seus curadores
e explico aos improcedentes
o mistério que não quis alunar
no dorso da meditação. 
Sou o inventário da inquietação
implacável com o dorsal acomodado
estreante da fala insólita
na justaposição de alcateias e colmeias. 
Não adivinho adivinhas
nem telefono a oráculos
não obedeço a mandantes
e riposto contra a desordem sem vestígio. 
Acompanho os mares
sem seguir marés. 
E anteponho o olhar insaciável
sobre a cortina da comiseração
a pungente serenidade dos que capitulam
por ser intangível o sangue que me ferve
na balaustrada solene em que me faço palco. 
Este é o palco
em que sou mais do que matéria
o combustível imarcescível no golfo das sílabas
e terço as armas contra a solidão dos verbos
que outros desprezam. 
Entre o dia e noite
sem medidas cautelares
sem avisos com antecedência,
só o espelho radiante que dimana do meu peito.

#1174

O deslembrar 
no ermo desmatado
evoca a memória sem paradeiro.

2.9.19

#1173

Não é por ser vindima
que se corta tudo a eito.

Testemunho

Guardo o sal de mim
na tarde sentida
mercado sideral na marca do tempo
libertação na casa sem morada.

Soa o poema altivo
na luminosa coalescência da memória
sem o estorvo da palavra doída
enquanto nas ruas apanho os logros caídos
em cachos sem fruto.

Soo ao genuíno que habita em mim
promessa por prometer
prosa atapetada no lume diurno
a palavra docemente diuturna.
Coabito na cidade sem nome
arrematando os versos de estio
fecundos, solares,
o maravilhoso estado de insubmissão nunca tardia
contra o contratempo basilar.

Não é a noite do tempo
que congemina o abcesso da ideia
nem capitulo na fortaleza das palavras sem inventário:
dissolvo as certezas
na solução preparada com perícia
pelos tutores involuntários da incerteza 
que se constrói no parapeito da grandeza.

Não quero dos cientistas fogosos saber
não quero ter em mão
os gongóricos penhores de cátedras
avulsas ou não
que em meu peito guardo
o não distinto
a profunda curiosidade pelo indeterminado
e às janelas deixo ondear o verbo corrigido
a mealha aveludada que arroteia saber
o renascer embebido em cada dia nascente.
Não me escondo
se não das certezas afiveladas
e dos seus infalíveis tutores.
Vocifero o catastrófico assentar de obra
(que nunca seja tida como definitiva).
E combino com o porvir
descer aos confins da consciência
(se preciso for)
para cuidar das impurezas que se orquestram
entre as palavras milimétricas 
dos puerilmente eruditos.

Respiro esta incerteza heurística
oxigénio cabal onde me multiplico
na tentacular rede que aspira
ao grandioso estatuto dos que tudo interrogam.

1.9.19

#1172

É setembro.
Fim dos serviços mínimos.

#1171

O princípio ativo do apocalipse
esgota-se
no desembaraço da vontade.

31.8.19

#1170

Descobres uma mortalha,
que te cobre.
Vacilas.
Ficas sem saber 
se a transparência se imolou.

30.8.19

#1169

Estas são as avenidas
horóscopo sem fado
miradouro à procura de paisagem.

As mãos escuras do pastor

As mãos escuras do pastor
embaciam o céu,
locupletando-o.
Por um momento
o mapa do céu representa 
as rugas que ciciam desde as suas mãos.
E tudo se suspende
enquanto as mãos escuras do pastor
desenha a sua história
à custa do céu baço.

29.8.19

#1168

Não é o lamento
que dá cor ao dia.

28.8.19

#1167

Não é a janela que fala
mas os olhos que por ela veem.

27.8.19

#1166

Crónica de férias (8)

Um ancião concidadão 
protesta no avião,
que ele não sabe do idioma inglês
e a hospedeira devia ter aprendido português.

(Não, Vasco Pulido Valente,
estamos longe de sermos letrados.)

26.8.19

Flanco

O condimento do dia
efervesce na latitude pária
a combustão do gelo noturno.

Sem recusa
o peito grita sua dança
no risível jogo dos verbos arcanos
em remedeio da insanável fragilidade.
Se ao menos 
a lua comparecesse
e os bardos se intimidassem,
os pássaros voariam à noite
contra as regras
e a monossilábica defenestração dos males.
Mas não havia a candeia necessária
e os almanaques não anunciavam lua;
em pé,
sobrava o sonho insubmisso
e os bandos cercavam as muralhas
como se fossem seus tutores.

Agora sabemos
que nidificamos numa gramática inverosímil
o espectro da nossa originalidade,
autenticidade sem preço.
Sob as ruínas conservadas
florescem lírios selvagens
e uma ninhada de gatos furtivos:
nesse caso,
alguém dizia,
pernoitamos sob a maré sem nome
e ajuizamos o nada em que se deita a noite.

Oxalá 
fôssemos à margem da lei
e o riso iridescente apagasse as trevas
no penhor da fala sem gramática.

Somos
os medos que deixámos de ser.

25.8.19

#1165

Crónica de férias (7)

O desfile dos corpos.
Os belos.
E os outros.

#1164

Crónica de férias (6)

Feudo do macho lusitano
em qualquer geografia:
pose militar,
meio metro entre as pernas.

Carambola

Espreitar
o que não se olha para trás,
uma zona na franca que desmata o medo.
O espelho lapidado
o vidro denodado no firmamento das causas
o amarelecido sorriso dos druidas
os contrafortes onde se jogam
os contrabandeados azimutes da desalma.
Desertor e tudo,
mas não da sua silhueta,
que as sombras não eram inomináveis 
assombrações
e o proejo que vinha às mãos
aromatizava o relento,
adiava o silêncio.
Mercava-se quase tudo,
menos as mãos suadas
no santuário dos exílios sem causa.

24.8.19

Heráldica

Dito de outro modo:
era a heráldica dos modos
uma profecia sem tempo
a esplêndida dentadura por que o mundo
sorria
a rejeição da imundície
o atavismo das ruas
a despretensiosa despertença das pessoas
a fenda verbal que subjugava o sujeito
a dança escondida dos olhares
no perene vagar da vergonha do olhar vítreo. 

A heráldica.

Uma fusão de sílabas atamancadas
uma figueira sem limites
no astrolábio que roubava do tempo
o seu modo e o seu lugar.

Nunca maus houve brasões
os mais conspurcados remédios da humanidade.

23.8.19

#1163

Crónica de férias (5)

O autor descobre o pai depois de morto;
ou chega a uma interpretação do pai,
o que pode não ser sinónimo
de quem foi seu pai.

[Manuel Vilas, “Em tudo havia beleza [Ordesa]”]

Não tenho idade

Não tenho idade
no teatro que me testemunha.
Não sei das cores acabrunhadas
o sargaço do medo
as altas epístolas que deitam elegância
nas palavras.
Não tenho idade
e, todavia, não significa
que tenha encontrado o segredo da imortalidade.
Desejo os relógios sem portas
o mar escancarado
os frutíferos olhares em contramão
e sei dizendo-o
em estrofes sem vagar
no mais puro desmentido de mim.
Não tenho idade
porque me esqueci do tempo
a sua vacatura sem paradeiro
o esfoliante que desafia as coisas corpóreas
e de onde se resgata um sentido
(um qualquer, 
impossível de desenhar)
de subsistência.
Não tenho idade
no degrau do palco
que se demora,
à minha espera.

22.8.19

#1162

Crónica de férias (4)

No bar perguntam-me de onde sou.
Digo: “do mundo”.
(Não aprecio bandeiras).

#1161

Crónica de férias (3)

A falta de graça que grassa
torna os humoristas salvo conduto.

21.8.19

Dilema

Principesco ou trivial
canibal ou livresco
arabesco ou sacrificial
demencial ou canhestro.

Farsante ou plumitivo
descritivo ou bem-falante
tratante ou lenitivo
destrutivo ou turbante.

Elogioso ou desconfiado
indeterminado ou esperançoso
estiloso ou contrariado
desesperado ou teimoso.

Governo ou anarquia
oligarquia ou hodierno
hesterno ou hagiografia
fotografia ou eterno.

#1160

Crónica de férias (2)

Estes idiomas que não se entendem.

20.8.19

#1159

Crónica de férias (1)

Esqueci-me 
do que tinha esquecido.

19.8.19

Síndico

Um jogo ganha-se
na lotaria do modo
e ganho o estipêndio,
anúncio cautelar,
em memória futura.
No jogo 
há um jogo por dentro
as regras sem eito
amuralhadas na misericórdia inglória;
tratam-se as angústias na distração
o lúdico disfarce dos atores.
E compõem-se as loas
o trivial desembarque dos vitoriosos
que um ganho jogo
não merece silêncio.

#1158

Na fala sem medo
não sobram verbos contumazes.

18.8.19

#1157

Conserto com estuque
as frágeis paredes com fendas
à espera que sejam à prova de sismos.

17.8.19

#1156

Descobriu 
a reconciliação com o passado.
Não percebeu que não era 
a sua absolvição.

16.8.19

#1155

Não quero que me olhem
que me derruo
em vergonha.