2.10.19

Matriz

Dantes 
tinha como passatempo
polemizar.
Agora 
tenho como preferência
poetizar.
Diga-se 
que este é
o meu prémio de consolação.
Soube debulhar as arestas
que não saneavam as feridas,
permanentemente patentes.
Coabito, agora,
com a pureza das palavras
arrancadas aos sentidos
as que não claudicam aos sentimentos
as palavras jogadas na matriz bela
onde se aceitariam todas as preces
as que reinventam a gramática
nas costas de um papel gasto arrancado ao chão
as palavras que precisam de patentes.
Agora sei:
poetizar 
é aceitação da grandeza;
polemizar
leva do corpo uns anos de vida.
Agora 
sei dizê-lo:
antes que fosse tarde.

#1210

Corrimão
Corri a mão.
Como ria a mão.
De cor ri a mão.

#1209

Pelas rédeas,
o poente,
na vertigem do horizonte.

1.10.19

Campanha eleitoral

Não é da incontinência verbal. 
Não é pela retórica tribal
que amansa adversários
exalta o séquito
e (diz-se) 
hipnotiza o restante mercado das pessoas. 
Não é pela mitomania promitente. 
Não é pelo cortejo grotesco 
de personagens e figurantes
e aspirantes a personagens
que ainda não passam de figurantes. 
Não é pelo circo montado. 
Não é pelos plumitivos que
(não se percebe)
decaem no feitiço barato dos personagens
ou se deles escarnecem de mansinho
servindo-lhes microfone 
para provarem a risível condição. 
Não é pela pesporrência dos observadores
(e da sua indisfarçável parcialidade,
mas ai de quem a denuncie).
Não é pela estultícia 
dos julgadores de comportamentos alheios
sempre prontos
para abjurar os que não entram na dança. 
É quando apetece
regressar ao estado do bom selvagem
(excluída a hipótese do exílio temporário).

#1208

Parte da arte
é parto difícil
(quando chega a haver conceção).

30.9.19

Match point

Pleno. 
O corpo sem peias
atira as tergiversações
para a santuário do obscurantismo
e congraça
com o olhar límpido, 
despejado,
a matéria-prima fecunda
pura
contra a serventia aos suseranos
e a indelicada forma de ser
dos que penhoram a gentileza matricial. 

O barco não perde o rumo
não afunda no mar argiloso
e as palavras não se perdem
num campo sem nome nem norte
sem poente. 

Tudo se aviva no céu da boca
entre árvores avulsas e o avesso do medo
seguindo
as rodas dentadas derretidas nos dentes
modestas sinecuras não empossadas,
os vítreos chacais 
perdidos no inventário do mar. 

A boca insaciável
murmura
os versos costurados no acaso da noite
e não há notícias de luar
não há notícias
de gente tresloucada vinda dos arrabaldes
na insubmissão dos oprimidos. 

Sinto o corpo pleno
como se nem rugas o afeassem
e estou preparado para o equinócio
sem me parecer que o plano se inclina
em direção oposta. 

Mostro o sorriso
contido
(para não romper um hábito)
e sabem-me as pessoas 
inteiro
por não trazer à boca
palavras sem agrado
pessoas deitadas no olvido
memórias destinadas ao não paradeiro. 

Pleno
com este sol à porta
e o mar inteiro 
na embocadura 
de meu corpo.

#1207

[Aprendiz de marxista]

A manhã estreia a semana. 
Umas olimpíadas,
rotineiras e sacrificiais,
que jogos não são.

29.9.19

Coragem

Deixa-te possuir
pelo manto da bondade
até naqueles momentos
em que te chegam
como enxurrada
vestígios da inviabilidade humana.

Deixa que ao teu rosto
venham as pétalas perfumadas
os vitrais de uma abóbada magnífica
os verbos carnais
o império que não sabe ser poder
e dos teus olhos
impregna o mapa com a fome do universo
a rota avantajada nos dedos firmes.

Não dês atenção aos marechais da infâmia.

Resume em duas linhas
o parecer sobre a exuberância da vida
e omite as virgens negras
que ficaram
e não em nota de rodapé 
como algozes da História.

#1206

Desamparado
cai no chão de mel
e sobe ao miradouro dos dias luminosos.

28.9.19

Conferência de imprensa

Desespero

(“a morte não é prioritária”)

Cinema

(“la vie em rose”)

Articulação

(“colho o verbo em dias claros”)

Matilha 

(“arrumada a maresia na véspera do luar”)

Adormecimento

(“por dentro dos sonhos transviados”)

Pianíssimo

(“em casas distantes”)

Cortina 

(“fortaleza, ou esconderijo”)

Almocreve

(“amostra de renda no aval consecutivo”)

Desiderato

(“trovas em cima da sela”)

Simples

(“sem reparos”)

Centelha

(“se à fala não se retiram as vírgulas”)

Jogo

(“o gato que dorme em cima da salamandra”)

Sentinela

(“o convés aberto à tempestade”)

Ruela

(“despromovida, dantes praceta”)

Braços

(“parto diuturno com o selo da virtude”)

Horário

(“genuflexão em forma de critério”)

Insubmissão

(“aporia de uma vida inteira”)

#1205

Particípio passado.
Participo o passado. 
Por delação agravada.

27.9.19

À melhor de quinze

Posto de observação.
O frio enregela as mãos.
Acabou o café.
O colega das oito está atrasado.
Faço outras palavras cruzadas.
Não sei o sinónimo de “lisérgico”.
Se ainda houvesse café, saberia?
Está tudo calmo.
Não sei por que mantêm
o posto de observação.
Por isso
o colega das oito nunca chega às oito.
Já fizemos um jogo de xadrez.
Ganhou ele, eu adormeci.
Não digo que ganhasse se estivesse acordado.
Prometemos um campeonato.
À melhor de quinze.
Não passámos do jogo inaugural.
Ouvimos dizer
que o posto de observação vai ser demolido.
Se calhar é hoje
e o colega não chega às oito
nem a hora nenhuma.
Se ao menos o café não tivesse acabado.

#1204

O filão sem medo,
transfiguração dos limites
no rendilhado da romã outonal.

26.9.19

Boda

Se te contasse 
os verbos da aguarela
falaria
sobre as sombras que levitam da luz
os aquários onde sentadas estão
as esfinges de poetas arcanos
as linhas finas que compõem as silhuetas,
apenas arremedos de corpos
diluídos
na penumbra alinhavada pela bruma. 
Se te contasse 
as almas contidas nos verbos
arranjávamos
um dicionário por nossa conta
e dos nomes sem paradeiro 
não seríamos penhores
a não ser que uma multidão de rostos
viesse desaguar na praia que temos 
por praça forte. 
Se te contasse 
os riscos de um parágrafo a destempo
dir-te-ia
que participa dos sintomas com os poltrões 
que desarrumam o código da estrada
os argonautas que ferem a gramática
os miseráveis que sobre tudo
açambarcam opinião. 
Se te contasse 
a boçalidade que não vês
não estou certo de que de mim farias
fiel depositária da confiança;
acredita,
não são comezinhas as entorses
a prosápia dos risíveis
a arrogância dos néscios
o excesso de otimismo dos que se tresleem
quando determinam um espelho trapaceiro
como seu ponto cardeal. 
Se te contasse 
que na maior parte do tempo
apetece
a hibernação
ou seres refúgio onde me anestesio do resto
saberias dos teatros infrequentáveis
e de como és 
o lugar onde me apetece ser.

#1203

Estigmas da modernidade:
ficar sem rede
é perder a rede
(de segurança).

25.9.19

Desalojamento

Rumorejo
na insaciável forma
que se agiganta
no ocaso do dia. 
As sílabas são murmuradas
no promontório visível
que não estremece com os ventos desassisados
em reprodução de um verbo de
insurgência,
soluço cinético da roda dentada interrompida. 
Acordo na manhã tardia
sem o silêncio por companhia;
ou sonho, 
a destempo,
que o tempo se adiantou ao sono:
parece que a maré virou
e venho citado num edital contumaz
à espera da cidade sem estorvos
à espera de me fazer suserano de um nada
e do paço centrípeto expresso o deslamento
e entoo as estrofes 
tingidas com o açúcar da minha boca.
À medida das desmedidas
penhor de nada
por nada 
ser o império de que sou caução.
O império
desenhado na frontaria de um rumor
onde se empenham as palavras tementes.

#1202

É esta a tempestade,
a sementeira sem estorvo
dos deuses impertinentes.

#1201

[Continuação do poema anterior]

E se fizer a declinação 
da palavra compilação...

24.9.19

Decoro

É com o coro
que decoro
o código do decoro.
Corro nas entrelinhas
antes que a malha caia no decorro
e seja trespassado com o rosto corado.
Só mais tarde soube
que o decoro se não decora
e é preferível não haver coro
se ao decorar o decoro
do decoro me evadir
e caiar o conhecimento
com o soro da ousadia.
De cor
passo a saber
em alternativa
da cor da lascívia
em corrupção dos costumes
e sem fazer coro
no manual do decoro.

#1200

A trave sem mestrado
não chega a alicerce.

23.9.19

Sala de espera

Estimada sala de espera:
espero 
que não tenhas esperanças
da minha presença,
que a tua ausência tomo
como dádiva.
Mal não te auguro;
quero que de mim
tenhas o suave sabor do olvido,
para saber que de ti não tenho precisão.

Estimada sala de espera:
falta não me fazes:
das conversas que estranhos fazem
da estultícia militante nos canais de televisão
de aberrações que por lá desfilam
dos dramas que acinzentam vidas
das esperas que multiplicam o tempo.

Estimada sala de espera:
espero
que sejas tu
a ficar à minha espera
e que de tanto esperares
te canses
e esqueças que em mim há existência.

#1199

Imaginas o teu próprio dia
entre a miríade de sonhos
e escolhes uma personagem.

22.9.19

#1198

Enfim, outono:
a retaliação
contra o suor enxurdo.

21.9.19

#1197

Nau, se abundo.
Náusea, abundo.
Nauseabundo.

#1196

Sensibilidade no epicentro
e reticências no epílogo.

20.9.19

Dicionário

Uma pitada 
do teu sal
e eu desejo. 

Uma pitada
do teu mel
e eu transbordo.

Marxismo falhado

Em anotação demiúrgica
o rebelde suspira pelo epílogo sem dor
à medida que a sinfonia caótica de ruídos
ecoa da metalúrgica. 
Não sabe a que aspira o operário tardio
ou se apenas vive para o ganha-pão
que alimenta a sua vida. 
Não sabe a que sabe 
o saque do suor das pessoas,
versão expedita 
de um marxismo de palha gasta
na órfã gesta que não cessa de protestar. 
Sempre ouviu dizer
que as coisas não se ganham de graça
e a rebeldia inconsistente
não achava graça à onerosidade. 
Talvez sobre um pedaço de lua
sobranceiro à alvorada
e seja testemunha da sua insubmissão. 
Admite
que nunca soube o que era saber
uma intempérie diária 
abater-se
sobre corpo e alma
e admitia
que a rebeldia devia ter incarnação 
nas massas oprimidas,
não fosse dar-se o caso de não acreditar
na luta de classes
e no léxico correspondente. 
Não deixava de o lamentar. 
Sempre teve a impressão
que são mais diligentes
e próximas do leitor
as estrofes que se arregimentam
em favor dos oprimidos. 

#1195

A humanidade demasiado imperfeita.
(Ou por que há estátuas de vivos.)

19.9.19

Os ignaros não sabem nadar

Homenagem aos navios destemidos
a gesta que desafia 
mares imensamente maiores
aos que nas marés sulcadas levam mercancias
aonde não seriam do conhecimento
não fosse pela sua audácia. 
Homenagem. 
Que nos tempos correntes
apedeutas eleitos por outros seus pares
se aprestam 
a rasurar a história e o conhecimento
oferecendo aos súbditos
o poder da sua ignara arbitrariedade
e as sementes do retrocesso. 
Mal soubessem
os súbditos assim governados
que saber do outro
não é aqui bisbilhotice;
é abrir as janelas
de par em par
para do outro receber fragmentos
e ao outro deixar um selo com a sua marca. 
Prouvera
que aos néscios dessem tirocínio
e umas lições sobre os registos do pretérito.

#1194

Mobiliza-se, o ócio,
na manhã de todas as azáfamas
e eu, 
como se conspirasse contra os deveres.