4.2.20

#1376

[Benign capitalism]

I owe
therefore
I own. 

#1375

Um rasgo 
na combustão
a atalaia 
da voz insubmissa.

3.2.20

#1374

Até fazia um poema pornográfico
mas temo que o poema 
tingido de vermelho fique
(de tanto corar).

Batalha

Não é contestação que se esgrima
o “não” a rebentar seco na boca
a antecipação do logro. 
O latido premente
arremedo de vítima em comiseração
levita de um além
situado
nos contrafortes do horizonte
naquele exato ponto 
em que a vista desmaia 
no precipício escondido atrás do horizonte
(se o olhar alcançasse a demanda).
Depois:
prantos
um atapetado ladário
a boca horizontal de tanto lamento
um hibisco descarnado
decadente
como decadentes são
os pedintes de misericórdia.

#1373

Um vago vagar
enquanto não vaga
a vaga venal.

2.2.20

Emboscada

À tarde
na emboscada
o siso entrou em greve
e das lajes sobrou uma vírgula
uma modesta vírgula
a fazer a diferença.
Ninguém estava perdido
e parecia que a contagem era crescente
todas as pessoas tomadoras de seus reveses
em valsas iletradas no palco da noite
em paredes estendidas na margem.
A emboscada era sofrível
e não havia reféns nem resgates
apenas uns estarolas em momento lúdico
empenhados à sua própria boémia.

#1372

Coxos e mitómanos
(o selo da civilização).

1.2.20

Advertência

Sala de espera:
o contorcionismo diletante
à espera
talvez
da redenção.

Antes de haver um apartado
(escondido da visibilidade)
devolve-se o penhor com juros
e livra-se a consciência 
de outros
malefícios.

Não é o pudor que conta.
A média dos melhores
é do foro da assimetria
e se à sala de espera retornar
ficam as psicadélicas avestruzes
insistentemente
recusando a cabeça 
subterrânea.

Termos em que não custa a espera
na sala de espera.
O apartado
refúgio do fingimento
funde nos corsários as almas 
despenhadas.

#1371

Um pequeno narciso medra no vaso 
onde fátuos fogos se extinguem.

31.1.20

Tutela

Qual é a sabedoria dos sábios
a imagem diligentemente nítida
o verbo colocado
a consumação da perfeição afinal possível?
As sombras escondem o palco lívido
as cortinas arroxeadas
que deixam, 
sob a espátula da contraluz,
silhuetas em fundo
os corpos despropositadamente deselegantes
apanhados à má-fé
enquanto se preparam para as luzes?
O que deixamos em legado
se não as impressões imateriais sem paradeiro
a sementeira árida
um diadema de nada
a escultural pose dos abastados vencedores
de jogo sem adversário
um jogo de sombras
em que somos a estatura diminuída
do espelho refratado?
Que se anuncia
no cimento do passado
que se conjuga com verbos intransitivos?
Deixamos em memória futura
a mnemónica artilhada pelas mãos
o sumo do dia vertido na areia
a infecunda faca esgrimindo a fúria sem rosto
o goto da incerteza
as paredes por onde se desenharam os corpos
o património sem inventário?

#1370

Entre a sede e o tumulto
a cólera em forma de voz.

#1369

A marquesa
estendida na marquesa
à espera da lascívia clandestina. 

30.1.20

Machado de paz

Digo-o
com todo o fervor
a centelha ávida a estalar
na boca:
confisco um pedaço do horizonte
preciso 
de um pouco de espaço para arregaçar os olhos 
e do redor trazer os instantes sortilégio
o muito que se pede 
ao promontório onde se tutelam as vontades.

Se em roda se verter o precipício
diremos 
sem temor
que não sobram 
as angústias em sede própria
dissolvidas no caldear da noite
em pose de luar luminoso
em pose
até que o retrato caiba na moldura.

Tomo em mim a frescura da manhã
e deito os dados ao relampejar das vozes
ainda timoratas
ainda apressadas
dos matinais passageiros
os tumulares esqueletos contrariados,
que mais parecem corpos mutilados.

Não admito
se não 
o vago pesar das ondas
em que se deitam os pássaros 
para de meu vagar 
saber tirar a rasante do desmedo.

Divago,
talvez.

Desmonto 
as agitadas vozes atribuladas
renego-as às sombras lenticulares
aos lugares
onde medram os apóstatas dos pleitos.

Não 
em mim não coabitam os gládios
e sei do santuário
onde se somam as pazes.

#1368

Trago à história
um aroma de História
contra a bolçada aragem 
de mitomania e disfarce.

29.1.20

Paciente (ao quadrado)

Um paciente paciente
conta as sílabas à medida dos segundos
E secunda a prosápia póstuma
dos iracundos a destempo.
desaperta os nós cegos por dentro
do sangue
em camadas fundas, inertes,
enquanto esboça a legenda sob a janela
no formulário amarrotado,
sem autorização para o agastar.
Paciente
o paciente interroga
a paciência
pois não consta
que pacientes impacientes
sejam de outra linhagem.

#1367

Do miradouro decano
os prantos perdidos
da viuvez sem paradeiro.

28.1.20

#1366

Andava à procura 
de revistas cor-de-rosa.
Andava à procura 
de cagões.

O homem que gostava de fazer prefácios

O homem que gostava de fazer prefácios
fez mais um prefácio
na contabilidade prístina
de quem se faz solene visita
às palavras lacradas por outros. 

O homem que gostava de fazer prefácios
gosta de uma cerveja antes do jantar
enquanto amacia o pelo do bulldog 
e mastiga as cascas azedas
que o mundo obnóxio não se cansa de bolçar. 

E mesmo assim
o homem que gostava de fazer prefácios
tem sempre um prefácio 
à espera de sementeira pela prolífica mão
e ufana-se
nos interstícios da alma
pela façanha contínua.

Ainda hoje,
tantos prefácios depois
que até 
o homem que gostava de escrever prefácios
perdeu a conta ao inventário,
ninguém pergunta pela obra restante
do homem que gostava de escrever prefácios. 
Tamanho pergaminho
é predicado de um escol
de um punhado de prescientes
estabelecidas autoridades intelectuais,
com obra firmada. 

Mas 
do homem que gostava de escrever prefácios
ninguém conhece a não ser
as páginas 
onde o homem escreveu prefácios.

#1365

Nasce no musgo
a auréola vaga de um sonho.

27.1.20

Barragem


Explosions in the Sky, “First Breath After Coma”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZVSrcxqUQH0

Guardei as lágrimas
em avesso
dobrando as rugas à medida da luz
à medida dos dedos no meu rosto
e sem o estertor dos desertores
trouxe ao meu lugar a vívida expressão
a gramática sem arestas
a tença na meação da carne.
Dos pedaços de suor embebidos na boca
parecia emudecer
mas estava enganado
era o libérrimo ecoar escondido
que fazia rima com os versos avulsos
e os braços acordavam-me dos pesadelos
os braços
eram o refúgio que silenciava os pesadelos
o mosto incindível 
que se acendia sobre o prazo ilegível
na sobreposição das palavras incendiadas
sobrando na maré-baixa
a constelação de estrelas onde se guardam
as frases emolduradas nos lábios incansáveis.
Guardei as lágrimas
no inverosímil rebanho que ninguém guarda
e contra os preceitos impecáveis
contenho no peito as águas de um rio
pois que de mim pediram para ser
barragem.
E eu não sei
se tenho bagagem
se em mim há a linhagem rara 
dos letrados dos sentimentos
a curvatura dócil da letra 
retirada à língua morta
para em refrão incansável
bordejar os limites do corpo com um luar
um luar intensamente singular
costurado pelas framboesas que não apodrecem.
E eu
exangue
limpo 
não as lágrimas
mas o suor
que delas veio em permuta.

#1364

Dantes
é um paroxismo.

26.1.20

#1363

Deste ao nome epicentro,
o fermento de um logro.

25.1.20

#1362

Colossal.
Colo o sal.
Colo e sal.

#1361

Sauf la liberté:
le crayon contre l’ombre.

24.1.20

Opúsculo contra as exclamações

De que cor
é querida a exclamação?

O simultâneo pesar
armadilha o sangue válido
e as vésperas passam a ter sentido:
não são apoquentadas por exclamações,
enfim 
na posse de seus autores
sujeitas apenas à sua vontade. 

Não encontro as ruínas,
o que me deixa exultante
contra 
os macilentos, espúrios tenentes da angústia.
Os dentes não travam os verbos anciãos
como não se opõem aos verbos moços:
em vez de algemas
desenham-se no céu 
os contornos de um rosto que sorri
contra as injúrias,
demitindo as exclamações
que não passam de ruído de fundo, 
uma distração. 

Não se concebem 
as partidas apalavradas
as enciumadas insónias
que travam o sono fecundo. 

Eu sabia
que a interrogação
sempre foi o sinal preferido.

#1360

Exílio sem força
por de uma forca fugir,
eis o panótico do plural.

23.1.20

Ode aos detestáveis

Do cofre da indigência
a semântica da força bruta
esporeada pela verborreia incontinente
e pelas más entranhas,
sem remédio. 

Os olhos vertem bílis 
e do imerecido palco bolçam desrazões
à medida das horas perdidas em inventário. 
Pudessem ser a gravitas 
e do poder serem máximos tutores
e da inquisição voltar-se-ia ao verbete
num passo falso nas eras. 

Uma certa comiseração lhes é devida:
pouco falta
para serem consumidos pelo avinagrado teor
das entranhas imersas em convulsão
e como 
ao olvido atribuem as medicinais prescrições
desfilam a sua soez condição
patriarcas de um predicado:
o fel contínuo, 
não decantado, 
tem efeitos tóxicos
e são como os eucaliptos 
que recusam a concorrência de outra vegetação,
risivelmente irascíveis
e vítimas da sua própria irascibilidade. 

Quando à terra forem destinados
teme-se o seu maléfico efeito,
a contaminação 
de terras e águas subterrâneas. 

Esta devia ser a próxima causa
dos advogados do ambiente.

#1359

Esta maré 
não deu em nada,
a safra deserta.

22.1.20

#1358

Que não coma
quem está em coma
na cama em que descama.

Naipe

Um pequeno salto no úbere do medo
é a farsa composta no madrigal
entre os lagos parados e os ninhos.
Admita-se uma tempestade:
será apólice do desmedo
a tresloucada saída para a rua
o peito a dar-se ao vento irascível
à chuva copiosa
um desmando intrépido
a recusa do estabelecido.
Um pequeno salto na voz dos astutos
e a fala enuncia nomes
nomes na parte inteira de que são feitos
o verso da cidade que precisa de amanhecer.
Um instante na estação do metro
a plataforma apinhada de rostos sem rosto
o estridente matraquear das carruagens
desafia o olhar
extraído da abúlica condição.
O resto
são as escadas que separam do solo.
Não há medo que suba à superfície
quando somos toupeiras comodistas.