27.1.20

Barragem


Explosions in the Sky, “First Breath After Coma”, in https://www.youtube.com/watch?v=ZVSrcxqUQH0

Guardei as lágrimas
em avesso
dobrando as rugas à medida da luz
à medida dos dedos no meu rosto
e sem o estertor dos desertores
trouxe ao meu lugar a vívida expressão
a gramática sem arestas
a tença na meação da carne.
Dos pedaços de suor embebidos na boca
parecia emudecer
mas estava enganado
era o libérrimo ecoar escondido
que fazia rima com os versos avulsos
e os braços acordavam-me dos pesadelos
os braços
eram o refúgio que silenciava os pesadelos
o mosto incindível 
que se acendia sobre o prazo ilegível
na sobreposição das palavras incendiadas
sobrando na maré-baixa
a constelação de estrelas onde se guardam
as frases emolduradas nos lábios incansáveis.
Guardei as lágrimas
no inverosímil rebanho que ninguém guarda
e contra os preceitos impecáveis
contenho no peito as águas de um rio
pois que de mim pediram para ser
barragem.
E eu não sei
se tenho bagagem
se em mim há a linhagem rara 
dos letrados dos sentimentos
a curvatura dócil da letra 
retirada à língua morta
para em refrão incansável
bordejar os limites do corpo com um luar
um luar intensamente singular
costurado pelas framboesas que não apodrecem.
E eu
exangue
limpo 
não as lágrimas
mas o suor
que delas veio em permuta.

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