14.4.20

#1497

[Crónicas do vírus, LXIII]

O sofá 
vale
ouro?

#1496

[Crónicas do vírus, LXII]

A ausência
elevada a regra.

#1495

[Crónicas do vírus, LXI]

Entre 
quem muito procura o saber
e os que não sabem o que não sabem.

13.4.20

As mãos suadas pelo passado

O inventário da lua
à luz do dia
tradução da alma amuralhada.
As cinzas não sobram
no planalto dos sonhos.
Prováveis peões em trovas alheias
oferecem-se na pior das generosidades:
a útil idiotia que os veste
não transige no harmónio da razão
(o que quer que seja a razão)
e o bazar dos inquisidores
não hesita na opressão.
O inventário da lua
arruma as teias armiladas
os coices amontoados
no poço do esquecimento
o tear com as cadeiras destroçadas
uma lágrima vestida no firmamento.
Não se luta
se não a favor da vontade.
O arquétipo sem omissão
entre duas mãos suadas pelo passado.

#1494

[Crónicas do vírus, LX]

O que é feito
dos vícios de rua?
(Meirinhos da moralidade 
vingados pela mão favorável 
da praga.)

#1493

[Crónicas do vírus, LIX]

Lá fora
uma tela baça,
a preto e branco.

12.4.20

Retórica

Conta
o que não é dito
na mesma medida
do que é dito?
E entre
o dito e o não dito
há intermediário,
exegeta capaz do sonho
a não banal escavação
das palavras intuídas?
Ou tanto faz
dar o dito pelo não dito?

#1492

[Crónicas do vírus, LVIII]

A higiene
tornou-se canónica.

#1491

[Crónicas do vírus, LVII]

A morte 
tem a última
palavra.

#1490

[Crónicas do vírus, LVI]

Jardim de Éden:
o despertador da natureza,
a avisar.

11.4.20

#1489

[Crónicas do vírus, LV]

Do exílio caseiro
ao PREC capilar.

Revisão da matéria dada

Do nada digo nunca
estaleiro da metamorfose
quando a alvorada semeia o dia.

A espada embaciada roça o rosto
e ao medo amiúde mostro
o mastro da indiferença.

Do nada,
digo nunca
material de reserva
no alfaiate das memórias.

Do nada digo,
nunca:
e provo o sal da safra 
em sílabas sardónicas
por saber que a solenidade 
é uma sombra dos sentidos açambarcados.

#1488

[Crónicas do vírus, LIV]

Desta vez
Jesus não ressuscita
ao terceiro dia.

10.4.20

#1487

[Crónicas do vírus, LIII]

A epidemia estatística 
– uma outra epidemia.

Shortlist

O ocaso lisérgico
idioma nu
singelo,
apóstrofe de Sísifo
vitral em praça velha.

Não por acaso
vulnerabilidade
rima com
fragilidade
como se a cabeça sem chapéu
fosse letra a desprecisar de acento.

#1486

[Crónicas do vírus, LII]

Cinquenta minutos
em espera para reabastecer a despensa.
Um certo odor a apocalipse.

#1485

[Crónicas do vírus, LI]

Haverá a.c.
(antes do coronavírus)
e d.c.
(depois do coronavírus).

9.4.20

#1484

[Crónicas do vírus, L]

O paraíso dos patrões:
depois de tudo
todos voltarão
com fome de trabalhar.

O beijo do vento

A maré
trouxe os godos polidos 
em seu vazamento 
no despontar da geada,
o rarefeito ar frio da aurora.
Andava uma mulher curvada
julgo 
na colheita dos godos.
Espalhados,
os despojos da maré-alta
desenhavam um caos sobre o areal:
mastros de árvores idas
a polifonia dos plásticos imensos
a areia suturando uns limites desarranjados
dois ou três pneus avantajados
mas sem notícias de garrafas desembarcadas
que já não deve haver náufragos por contar.
Da janela
a resplandecência dos lisos godos
à medida que o sol desenvergonhava
e semeava uns quantos raios
incendiando as pequenas pedras,
que aparentavam um polimento de primor.
A mulher sacudia a areia dos sapatos
quando o vento mudou de parâmetro
e arquejou pela barriga do mar,
até então ameno.
Por sorte,
a maré vazava.
O mar estava poltrão.
Deixou o vento em solitária fala.
Como a mulher 
que inaugurara o dia na colheita dos godos.

#1483

[Crónicas do vírus, XLIX]

O dia em que voltou
a ser feudalismo.

#1482

[Crónicas do vírus, XLVIII]

Ecos,
o horizonte
a clarear.

8.4.20

#1481

[Crónicas do vírus, XLVII]

Minimalismo
é o verbo
o alfobre da paciência.

Fiz-me fevereiro

Fiz-me fevereiro
no rosto hercúleo 
resistente ao inverno
frugal, 
contudo,
nas vestes encenadas.
Fiz-me fevereiro
por divergências com a primavera
e ao assunto que interessa
fui de marcha-atrás
para não parecer guloso.
Por mais serranias que desandasse
não havia neve
nem vestígios antropológicos dela
e de pouco me serviu
o fevereiro que trajei.
Pedissem-me um parecer
e não chegava a tal estatuária:
em remissão
seria fiel depositário do silêncio,
já que tanto se diz
antes a mudez sitiada
do que palavras em pose néscia.
Assim mo disse 
o fevereiro depois do tempo
depois da vã demanda da neve.

#1480


[Crónicas do vírus, XLVI]

A quarentena 
não faz diferença
aos gatos de casa.

#1479

[Crónicas do vírus, XLV]

Uma lua singular
a tomar conta 
da esperança.

7.4.20

#1478

[Crónicas do vírus, XLIV]

Pode ser
que o ano comece
a 9 de junho
(mais ou menos).

O chão ensanguentado

O corpo desajeitado
emulsionava uma dança
enquanto a chuva ensanguentava
o chão túrgido.
Falava-se de tudo.
Falava-se.
E no coldre do silêncio
em fermentação vagarosa
as falas em verso sem medo
contemporizavam com os beócios,
um prolongado bocejo
aliterado na varanda dos lúcidos.

Não havia tempo para o tempo
e nem os gatos vadios
sabiam da liberdade,
entretanto.
No-la diziam munida de arestas
o ventre aberto às permeáveis cisões
para da voragem das tiranias 
ser protegida.

Não fiquei convencido.

Os prestimosos comandantes
que se alardeiam tutores da liberdade
fazem lembrar 
os que se enfatizam
contadores da verdade 
– de verdade –
como se fosse preciso
a quem conta a verdade
dizê-lo de viva voz;
sempre deles tive noção
de serem o contrário do que se apregoam.

A liberdade 
não se escreve com t.

E lá fora
enquanto a dança desajeitava prosseguia
nos preparos da solidão
e os gatos vadios estavam ausentes
a chuva ensanguentava o chão.
Mais ainda.

#1477

[Crónicas do vírus, XLIII]

A espera
ainda
à espera.

#1476

[Crónicas do vírus, XLII]

Um parêntesis
demorado,
a resistir.

6.4.20

Números

Numerologia.
O código cifrado
devolvido ao punho esventrado
as cicatrizes amplificam a prece
no repatriado remendo da noite.

O chapéu inaugurado protege um pirata
e as rugas desenhadas 
descem pelo rosto
colonizam o corpo inteiro
tecem o seu caudal,
assentam
fronteiras definitivas até ao arrancar da vida.

No espelho de um oito deitado
confirmo a irredutível finitude:
há cemitérios por todo o lado
e não consta
que alguém consiga ser foragido.

Antes que seja tarde
povoo a boca com perguntas irreparáveis
e dou às nuvens suavizadas pelo ocaso
um poema singelo
as palavras sem compromisso
a alvar figura cunhada ao entardecer
o verbo mutilado na angústia que desce
em manadas sitiadas pelo caos
sem rédea no coldre,
os fiordes mentais ditando sílabas
nas páginas juvenis que esperam pedagogia.

Antes que venha a tarde
na indeterminada convenção (da tarde)
e leve a maré para o basalto escondido
e pescadores sem escrúpulos
roubem a luz do farol
condenando navios 
à orfandade.

Até que sejam contadas
as vinte e quatro horas de um dia
e a folha sequente hasteie ao vento húmido
a vontade de dizer presente
no pedestal dos avivados mestres da vida
em teclas de piano descendo seus dedos
no púlpito do verso acobreado
o avesso da noite sem luz
a escadaria íngreme
deitando a mão
ao que sobra da equação:
um relógio estilhaçado,
sábio.