17.5.20

#1569

[Crónicas do vírus, CXXXV]

Uns rudimentos de verão
e é como se tudo fosse
como dantes.

16.5.20

Pantagruel

A tiara turquesa
alíquota parte da alma benigna
sem o azedume dos amaros
nem a audácia dos vilipendiados:
artesão em todas as formas
do forno extrai o fumo aromático
e verte no preparado 
ditando o original para o compêndio
guardando o receituário do sortilégio.
“Nem que me pagassem 
um alqueire de ouro” 
– recadeia a instâncias de uns mercadores
não sendo olhos nem ouvidos
se não para o segredo conservado
no avesso das pálpebras.
As mãos,
seladas,
são testemunhas únicas.

#1568

[Crónicas do vírus, CXXXIV]

Princípio geral da máscara:
o indiligente escanhoar
deixou de ser escrutinado.

15.5.20

#1567

[Crónicas do vírus, CXXXIII]

Nas praias, 
à distância.
O que será feito
dos marialvas da sedução?

Mudo

A muda palavra
muda o sentido da frase.
É a vez de outra muda de roupa
antes que emudeça a voz rebelde
a impaciência tenha alvorada
e mude o lábio assestado contra o perjúrio.
Mudo me mantenho
que o silêncio fala pelo húmus
que em mim se não muda.
Mudo
antes que seja mudado
e da muda sextante de mim
sobre um nada,
o mudo intérprete lembrado 
para cobaia dos frívolos mastins.
Deixo-os aos seus miasmas
enquanto mudo a muda
e sem medo desembaraço a fala inteira.

#1566

[Crónicas do vírus, CXXXII]

Voltou
o tempo
dos milagres.

Portugal 2020

(Da série “poesia para beócios”)

Ninguém diga ser indiferente
a história de amor comovente
esta de ver o presidente
cortejado pelo intendente.

Pois Costa o maior da paróquia
em inesperado onanismo
expiou o tabu da hierarquia
e Marcelo retribuiu o repentismo.

Pela chancela da mão presidencial 
em apoteótico código telegráfico
teve o intendente espasmo torrencial.

Assim vamos no Portugal pornográfico
nesta infusão de união nacional
ó pobre 2020 seráfico.

14.5.20

O plumitivo calvo

O plumitivo
discorre
com pose de catedrático
comentando hodiernidade
do alto da cátedra
o infalível juízo.
Proclama:
dos sítios federais
a maior indigência
a estultícia exponencial.
Não sabe
o plumitivo
a diferença
entre árvore e floresta;
mais ajuda
para o entendimento do plumitivo:
não sabe
que uma instituição
não se confunde
com as pessoas 
seus momentâneos rostos
– a instituição 
resiste às pessoas

(mesmo quando as pessoas
a maltratam).

Para coroar 
o raciocínio
bolçado desde a mansarda
o plumitivo
sentencia
(e cito)
que é cenário
de arrepiar os cabelos.
Não é o caso do plumitivo
puritano calvo,
lucidez evaporada
ao ter o cocuruto
sido testemunha
da desmatação capilar.

#1565

[Crónicas do vírus, CXXXI]

Já 
desaprendemos
os beijos
e os passou-bem?

#1564

[Crónicas do vírus, CXXX]

Nada era novo,
às muitas perguntas
desertas de respostas. 

13.5.20

#1563

[Crónicas do vírus, CXXIX]

O senão dantes
se não
senão nenhum agora.

O fim dos deuses

Os deuses 
declararam-se inexistentes.

À porta do olimpo
dois aglomerados.
No primeiro
os circunstantes exigem
retratação
o arrependimento dos deuses
de forma 
a que o voltem a ser.
No segundo
os circunstantes povoam
a excitação
enfim provada a sua tese.

Os segundos
não intuíram o logro
de que foram presas:
festejam o fim das divindades
sabendo da sua preparatória existência
e da contradição não se libertam.

Os primeiros
vertem lágrimas de tristeza
e sabem que doravante
trocam de lugar 
com os circunstantes 
do outro lado da rua. 

#1562

[Crónicas do vírus, CXXVIII]

A hera
da cidadania
bubónica.

12.5.20

Lixívia

O dinheiro
não se pinta
navega no pião
em juros anciãos.

A mortalha
assenta ao iconoclasta
meão beduíno
de rios sem caudal.

A centelha
ferve no rebordo
sem sal avivado
no sargaço da manhã.

O rebelde
descuida o corpo
contumaz no teatro
com títulos desmaiados.

O prato 
explica os jardins
diante de pueris
eruditos sem trono.

O saneador
esconde o ostensivo 
lagar da purga
lavado em nostalgia.

O livreiro
escondido da clandestinidade
dispensa as vírgulas
fora do sítio.

A poesia
fervilhante memória futura
corrige a boca incapaz
devolve o mar sem baias.

#1561

[Crónicas do vírus, CXXVII]

Não se imagina
se não (com nostalgia)
a alvorada do passado.

#1560

[Crónicas do vírus, CXXVI]

Da lusitanidade
outra vez ínclita.
(Males que vêm por bem)

11.5.20

#1559

[Crónicas do vírus, CXXV]

Já alguém se lembrou
do boomerang?

Os gramas do medo

A pele puída abre o cofre
paira sobre o rosto corrompido
do devir à espera de vez.

A estola da vaidade 
cai sobre o pescoço emaciado
que exulta com o disfarce.

Pelo tear da janela
o beijo seráfico entra sem cautela
e o peito arde como tocha sem ignição.

Os puristas encenam a geada a destempo
coabitam na fortaleza decadente
à espera de divindades sussurradas.

Não é paga da vingança
a que oprime a geração fortuita
em meneios de dançarinas sem sorriso.

Os dados da contenda não saem a terreiro
teimam na contemplação do inerte
como se esperassem pelo dia sem fronha.

De todos os agarrados aos maternais saiotes
exultam com dentes de fora
como fagotes de orquestra flácida.

No espelho da alvorada
as lacerações perdem-se na frugalidade
hesitam entre o apetite do dia.

É um tudo que se perde no olvido
o tudo descolorido pela melancolia
as ações cotadas na bolsa da improficuidade.

#1558

[Crónicas do vírus, CXXIV]

Eis o nirvana
de aprendizes de tiranete
e da coorte de empenhados obedientes.

#1557

[Crónicas do vírus, CXXIII]

Tarefeiros do apocalipse
em comandita
com os sociólogos da novidade.

10.5.20

Avental

Pirómanos
sem saber
vultos amordaçados ao devir
sobem aos rostos 
à procura do dia.

Nem que todos os vulcões
latissem em protesto
e os fiordes amornassem
os párias seriam estetas
e as viúvas
senhoras de silêncios.

O cabo estreita-se sobre o mar
ermo
e as dádivas foram sonhos
uma praça vazia 
no meio do luar.

#1556

[Crónicas do vírus, CXXII]

Há sempre céu
no azul do mundo.

9.5.20

Um espelho

O olhar
é um espelho sem avesso
a olhar-se por fora 
sem saber o que vê
a não ser
a invasão de outro avesso.

#1555

[Crónicas do vírus, CXXI]

Os novos alinhavos da semântica:
estar encurralado
deixou de ser um mal.

8.5.20

#1554

[Crónicas do vírus, CXX]

A indústria
dos historiadores do futuro,
com a corda toda.

Desbotado

Chanceler de seu murado pesar
passava os dedos pela lousa
onde fora aprendente.
Desmentia-se
na urgência de resgatar 
um pedaço da infância:
do rosto que seu era na meninice
não descobriu o paradeiro
ao deitar os olhos
aos retratos dos escolares de anos vários.
Não era proveito ter-se tornado lente
que outra é a sua audiência
já sem a inocência dos pueris 
que litigavam em jogos artesãos no recreio.
Lente com lastro
menos entendia as juras sempre descumpridas
como se a maior sua diligência
fosse a contradição interior.
Ao menos
que ninguém o acusasse de não tentar.
Ao menos
não se entediava no fuso da letargia.
Na noite consecutiva
em sonho o rosto menino seu
coalesceu em revelação
e levantou-se como a erupção de um vulcão
o coração saltando para as mãos
por dar conta que 
afinal
aquele era o rosto que lhe pertencera.
No dia seguinte
confidenciou:
a idade leva-nos tudo.
Até o rosto de que éramos meninos.

#1553

[Crónicas do vírus, CXIX]

Uma 
nova
época?
(Ou 
antes pelo contrário?)

#1552

[Crónicas do vírus, CXVIII]

Um relógio
a marcar passo.

7.5.20

Legionários

Aprendiam 
a ser legionários
impecáveis tarefeiros da demência 
sem rosto

(a demência
e deles, legionários,
que sobram como anónimos
nas fotografias) 

– a “carne para canhão”, 
como é dito pela voz do povo.

Aprendiam.
Com o beneplácito das cicatrizes
os membros amputados
o sono perdido a caminho do hospício
a lura de um cavalo lilás
cavalo a arrotear os rochedos
no cabo que se despenha sobre o mar.

Nunca acordavam do pesadelo
os legionários amestrados.

Nunca se desprendiam da liturgia:
um soldado
não é gente com direito de gente
é carne para canhão
o sangue oferecido num banquete elegíaco 
onde os generais amesendam
e se servem dos ossos e sangue
em legado deixados
pelos legionários partidos
e ainda assim
decaem na impureza das almas menores.

#1551

[Crónicas do vírus, CXVII]

Somos todos
uma máscara só.