[Crónicas do vírus, CCIII]
Chegou a vez
do estado de negação.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
No sossego antigo,
paradeiro sabido de um apeadeiro,
estimo o inestimável
na sombra esquecida de um jacarandá.
Untem-se-me os viscerais aromas
as pétalas já recessas
que decaem do jacarandá
o vestibular acesso
que prova a extinção
da primavera às mãos do verão
insaciável.
Nestas noites que se demoram
arranjo uma parede caiada
para ser depositária do mel incontido
que irrompe do meândrico labirinto interior
e sinto-me artesão na varanda do sonho.
Não se pagam
as juras que ninguém ouviu.
Cristalizam as dúvidas
à porta das interrogações
e medra a poeira que se deita
sobre a melancolia.
Derrote-se a melancolia
a vírgula fora do sítio
trespasse na moldura do artesão
à espera de saber
o nome do futuro.
Dou de mim
esta trova arlequim
sem ser de Bensafrim
ou usar roupa carmim
nem dar ares de mastim.
De mim faço vate
embora a cor seja mate
e no cais a estrofe embate
sem ramagens por desmate
nem arestas como arte.
Doido em mim trago esboço
da palavra em remoço
mediania deitada ao poço
sem vírgulas nem caroço
nem lenços ao pescoço.
Diamante de mim se oferece
na vez que se não esquece
a cada palavra que amanhece
sem a crisálida que se entretece
nem o gongórico que aborrece.
Druida não será minha linhagem
labiríntica personagem
emaranhada na ausente camaradagem
sem ossatura para ser pajem
nem ser dado à arbitragem.
[Crónicas do vírus, CC]
Já para a alma gémea
(de sua excelência mor)
oásis continuamos
pese embora o desmentido
da capital do império.
[Crónicas do vírus, CXCIX]
Sua excelência
acordou para a vida
(depois da efabulação com milagres)
e anunciou com pompa
uma crise que vai morder
sem piedade.
[Crónicas do vírus, CXCVIII]
Em tempos de pasto
de conspirativas teorias
calhou-me em vez
a invenção de uma:
a conspiração a favor
de hábitos de higiene.
Não se joguem as intenções
no coldre da roleta russa:
se o sortilégio for furtivo,
em hibernação,
não se queira atirar ao desfado
a combinação das probabilidades.
Queria-se a ousadia dos loucos
dos impensáveis estetas do acaso
em erupções de boémia sem boémios,
a varinha sem condão
uma rede tresmalhada de anciãos
à procura de um prado em repouso.
À medida da velhice
em validade fora de prazo
à espera
à espera que seja
o fim da espera
– que seja exata a bala no coldre
e que a roleta
tussa.
[Crónicas do vírus, CXCV]
Ecoava dos oráculos
um “novo normal”;
os assimétricos pratos da balança
em que a justiça se pesa
exibem um parto gorado.
[Crónicas do vírus, CXCIV]
Testamento
para memória futura:
os vindouros que não esquecem
das fronteiras revividas.
O corsário
não se mede
pelo tamanho da pala
que lhe embacia o olho vago.
O corsário
tão pouco se aprende
pela vacatura do olho:
a pala como embuste
pode embaciar
um olho pleno.
O corsário
tanto é corsário
com um olho vago
ou com os dois plenos.
Os cinco minutos de luar
fogem da penumbra
em seu palco alvar.
Dir-se-ia:
esta
é a primeira estância
aquela que recolhe
as preferências dos corpos estivais
e as sombras desmaiam
no intenso, garrido mostruário do sol.
Por isso
há cinco minutos em cada dia
e uma clepsidra urdida
nas árvores que se abrem
floridas
ao espanto dos literatos.
Há cinco minutos
esperava pelo seu acontecido.
Na companhia do luar
em seu epílogo.
Não sabia
que África podia ser
em Lisboa.
Às onze da noite
o calor estático
engana
o equinócio das horas.
Não sabia
que as palavras
podiam escorrer,
suadas.