2.7.20

#1647

[Crónicas do vírus, CCXVIII]

 

Ficou por confirmar

que somos

seres aprendentes?

30.6.20

#1646

[Crónicas do vírus, CCXVII]

 

Já não é

crime aos costumes

o rosto por escanhoar.

#1645

[Crónicas do vírus, CCXVI]

 

Prematuro

passou a rimar com

precipitação.

27.6.20

#1644

[Crónicas do vírus, CCXV]

 

Virada 

a embriaguez de autoestima

o anátema do patinho feio.

26.6.20

#1643

[Crónicas do vírus, CCXIV]

 

Começou

a corrida contra

os números

(pois não falam

o que deviam falar).

Dorna

Revólveres frios

fogem do fogo castrense

antes que castrados sejam

homéricos parceiros

a carne para canhão judiciosa.

 

Que estátuas merecem amanhã?

 

Não se diga 

que o ontem foi pródigo

em cascatas de medo

onde a chuva se cristaliza;

não se diga

que as juras tiveram eco

salicórnia a condizer

só para enganar maleitas habituadas;

não se diga

antes do adormecer

que sultões sem espada 

perdoaram boémios

e a vastidão do mar se enamorou

do ocre pintado sob a égide do ocaso.

 

Que estátuas perecem 

no punhal dos justiceiros sem nome?

 

Escutem-se os livros da História

antes que seja narrada uma história

que se agiganta num palco sem veios.

#1642

[Crónicas do vírus, CCXIII]

 

O milagre

reduzido 

às fantasias

de sua excelência.

25.6.20

Leme

Dentro do espelho

não há raízes

apenas 

o olhar límpido

desmatado de falas sombrias.

Nado por dentro do mar

colho o sal no sangue álgido

e nem assim 

sou elemento inato;

dantes 

o mar era juramento

e um gato enrolado no sono

mestramente súbdito do areal

onde bisturis metódicos se afunilam

sabe-se lá se à procura de tesouros

ou do ouro escondido nas próprias mãos.

Tiro o estibordo com a lente baça

e as asas desembaraçam-se do vento

em boa hora,

em boa hora.

Não fossem os heróis todos mortos

e a voz perdia o gongórico véu

para se somar à pastoril montanha

que desaparece na litania do horizonte.

Mas não sou viável cruzador

neste mar temperamental

não sou marinheiro 

por medo tido por penhor 

das náuseas matinais.

É em terra

que sinto o cofre

e da tua boca bebo o manancial

a língua que se enrola na minha

e os versos que sobem à crueza da pele

em remoinhos desalinhados.

Espero pela razia dos miseráveis

e não os tenho por materiais convenções:

os miseráveis

que se convocam na jactância

no solipsismo desarranjado

na vítrea fonte onde a água se empareda.

Até posso ser errante

que da minha transumância sou garante

em nome de um nome só

o nome que adoço na boca

quando 

a boca tua na minha tem fusão.

Para depois

antes de todas as vésperas

antes

que as janelas sejam desfronteiras

e todo o vento carregado de adjetivos

esbarre nas nossas couraças

seja eu promontório.

O alto:

para que a maré

pare a tempestade.

#1641

[Crónicas do vírus, CCXII]

 

Nunca

a dúvida metódica

garantiu tantos juros.

24.6.20

#1640

[Crónicas do vírus, CCXI]

 

Há os velhos do restelo

(vem aí a segunda vaga)

e os novos do restelo

(está tudo de feição).

Reino mau

Reino mau

história sem meio

terra de um rio também mau

e de profetas esquecidos no céu da boca.

 

Reino mau

que das boas coisas

andam os ilhéus exaustos

como se por exauridos estarem

se reformassem os vidros da catedral.

 

E reino mau

que meãos são os reis e as rainhas

em sua decadente pose

por cada deca dente rasurado por sucedâneos.

 

É mau 

o reino 

por ser sucedâneo de coisa nenhuma.

 

Não deem vivas 

à república

(antes que seja tempo).

#1639

[Crónicas do vírus, CCX]

 

Pernetas,

ostentamos o acinte

quando os números nos ultrajam.

23.6.20

S. João aprisionado

Fosse o manjerico

disfarce de foice e martelo

o S. João seria rico

sem precisar de um apelo.

 

Mas não é S. João

fingimento do Avante

pois categórico não

recebeu do mandante.

 

E até um pobre dragão

obrigado à faina

falta à celebração.

 

Ó desditosa taina

adiada para futura estação

à espera da luz que amaina.

#1638

[Crónicas do vírus, CCIX]

 

A precipitação

toca aos súbditos

e toca aos suseranos.

22.6.20

Exclusão de partes

O ultraje deletério

o traje ibérico

o úbere império

o unto pindérico. 

O asno paroquial

o alvo providencial

o aipo notarial

o asco presidencial. 

A lota desarmadilhada

a luta desafiada

a lula desconfiada

a luva destronada. 

A máscara nupcial

a mistura ocidental

a maresia occipital

a mortalha temperamental. 

O mosto tardio

o mastro arredio

o marco fugidio

o magma sadio.

#1637

[Crónicas do vírus, CCVIII]

 

Não há grande mal:

no tempo dos navegadores

também era preciso

corrigir a rota.

21.6.20

Meta-entendimento

De cada vez que havia penumbra

o mosto do medo tornava-se

a saliva da extinção. 

As cortinas eram muros ermos

ao mesmo tempo muralha e algema

insensato pedaço de verbo

nas sílabas vagarosas que arrastavam o dia. 

Dizia alguém:

devias sentir o que eu sinto. 

Houvesse quem recordasse

ser um logro a demanda

por imperativo do princípio 

da intransferibilidade dos sentidos. 

Como pode alguém convocar

uma comiseração destas

a não ser na demência da dor 

que consome até os ossos?

Pode alguém conter a ideia

que as consumições se perfilham

com almas que se protestem generosas?

Os cânones são implicáveis, contudo:

a solidariedade é exigência

ainda que seja não mais

que um logro para libertar interiores dores

que mergulham 

os labirínticos corredores da alma

numa castração 

se não souberem peticionar

a piedade com as presas dos infortúnios. 

Ao que dizem

a hipocrisia sempre foi o selo dos disfarces,

o teatro supremo 

em que todas as boas almas

são alistadas. 

A hipocrisia. 

A cortina plúmbea que se abate sobre os rostos

uma pousada onde temos o rogo

das exonerações das más carnes 

que nos consomem. 

Saiba na melhor das fazendas,

a que desaproveita a densidade das interpelações,

que o logro seja meu

é que do fado inscrito no oráculo

esteja o alinhamento com o palco sem limites

onde se confecionam 

o princípio geral do fingimento.

#1636

[Crónicas do vírus, CCVII]

 

Às vezes

a marcha-atrás

é fraqueza.

Outras vezes,

vício.

#1635

[Crónicas do vírus, CCVI]

 

Acerca da cerca

por cerco 

por certo.

20.6.20

O respeito e etecetera e tal

Uma sondagem

ao império da mansuetude,

eloquente,

aviva 

o princípio geral do respeito,

Essa forca perene

o sândalo da casta

mitra dos figurões

a genuflexão imperativa.

Marx estava equivocado.

Não era a luta de classes

era 

o princípio geral do respeito

(e a menoridade interior 

pressuposta).

#1634

[Crónicas do vírus, CCV]

 

Um ponto

a favor das máscaras:

não há estados de espírito

à superfície.

19.6.20

Sobre a decadência

Espalhadas pelo chão

pétalas que são rugas

a tradução da bela decadência.

 

Como há quem deteste

o outono?

 

O chão atapetado

não mente aos comensais da estética:

um leve odor a perfume floral

sente-se em contágio

e as abelhas sabem-no

sapientes na demanda de doçura

povoando o bosque.

 

Como há quem tenha medo

das abelhas?

#1633

[Crónicas do vírus, CCIV]

 

O antigamente

nunca foi

tão perto.

18.6.20

Areia fina

O céu virado do avesso

coabita no verso venal:

 

sabemos das ruas viáveis,

emparedado o vociferar 

das ruínas campestres.

Sinais e sinais perseguem o dia

em vez das presas habituais

com a indulgência de uma trégua:

 

não se inventariam culpas

nem consolos tartamudeados

em fábulas surreais.

Não havia estrada pela frente:

 

os tempos esquálidos esvaíam-se

consumiam o oxigénio emprestado

e de dentro das casas

subíamos aos terraços

à espera do crepúsculo.

Não sejam dadas as mãos

ao tiranete destino:

 

antes uma música em penhor

o coreografar desajeitado do corpo

a poesia que não se quer treslida

e todos os lugares admitidos

à estância dos marmoreados reféns.

Ouve-se na música:

 

todos cometemos erros.

 

Antes fosse espartana mitologia

açambarcando a fragilidade dos Homens. 

#1632

[Crónicas do vírus, CCIII]

 

Chegou a vez

do estado de negação.

#1631

[Crónicas do vírus, CCII]

 

Uma máscara,

um colete à prova

de bala.

17.6.20

Sob vigilância

No sossego antigo,

paradeiro sabido de um apeadeiro,

estimo o inestimável

na sombra esquecida de um jacarandá. 

Untem-se-me os viscerais aromas

as pétalas já recessas

que decaem do jacarandá 

o vestibular acesso 

que prova a extinção 

da primavera às mãos do verão

insaciável. 

Nestas noites que se demoram

arranjo uma parede caiada

para ser depositária do mel incontido

que irrompe do meândrico labirinto interior

e sinto-me artesão na varanda do sonho. 

 

Não se pagam 

as juras que ninguém ouviu. 

 

Cristalizam as dúvidas 

à porta das interrogações

e medra a poeira que se deita

sobre a melancolia. 

Derrote-se a melancolia

a vírgula fora do sítio

trespasse na moldura do artesão

à espera de saber 

o nome do futuro.

#1630

[Crónicas do vírus, CCI]

 

Precipitação

tornou-se

verbo.

16.6.20

Trova em vésperas de verão

Dou de mim

esta trova arlequim

sem ser de Bensafrim

ou usar roupa carmim

nem dar ares de mastim.

 

De mim faço vate

embora a cor seja mate

e no cais a estrofe embate

sem ramagens por desmate

nem arestas como arte.

 

Doido em mim trago esboço

da palavra em remoço

mediania deitada ao poço

sem vírgulas nem caroço

nem lenços ao pescoço.

 

Diamante de mim se oferece

na vez que se não esquece

a cada palavra que amanhece

sem a crisálida que se entretece

nem o gongórico que aborrece.

 

Druida não será minha linhagem

labiríntica personagem

emaranhada na ausente camaradagem

sem ossatura para ser pajem

nem ser dado à arbitragem.

#1629

[Crónicas do vírus, CC]

 

Já para a alma gémea

(de sua excelência mor)

oásis continuamos

pese embora o desmentido

da capital do império.