[Crónicas do vírus, CCCXIV]
O passaporte
sem marca de água;
uma página embotada
pela poeira insubmissa.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CCCXIV]
O passaporte
sem marca de água;
uma página embotada
pela poeira insubmissa.
Dos jornais:
não grafitarás os comboios
sob pena de multa.
Em falta está saber
se os jovens que redecoram comboios
leem jornais.
Contar histórias de autoestradas
os rodados continuamente rodeando
o asfalto que não dorme
áreas de serviço que traduzem descanso
e dois pontos separados pela avidez.
Contar histórias de autoestradas
quando o tempo se encurta
e dele sobra um remédio
para à existência dar uma poupança.
Contar histórias de autoestradas
portagem para um mercado abastecedor
no volúvel esfiapar da paisagem.
Contar histórias de autoestradas
onde a pressa estilhaça a temperança.
Exila-se
o maltrapilho
abjeto detrito social
pária sem paradeiro
nem inventário por anotar
morador de pardieiros.
Do exílio
fará convalescença
objeto de estudo da metamorfose
um caldo a preceito
dos estudiosos do arrependimento.
No degredo
reabilitar-se-á
e depressa
o desexemplo será bota descalça
e sem a bengala da reprovação
conseguirá ser
alguém.
Pois da terra que foi proscrito
o maltrapilho
roçou os antípodas do paradigma
sempre a um canto
tratado com desconfiança
margeando as próprias margens.
Hoje
ao longe
extirpou os sedimentos da pária condição.
Exemplar
é agora a sua estirpe.
Convocado
pelo lugar de origem
o maltrapilho transfigurado mandou dizer
que havia proscrito esse lugar.
Sabemos:
a decadência
está sempre à espreita
é espada sem aviso
irreparável
no doloroso estertor
que aviva a margem apodrecida.
Não há calendário para a decadência:
ela contém o seu próprio oráculo
mnemónica sabida
só depois do tempo.
Só então:
a decana decadência
se improvisa,
indomável,
e por suas lentes
tem assento as coisas baças.
“Thives like us”,
disseste
e eu traduzi:
a afeição que os ladrões
têm por nós.
“Thives like us”,
reiteraste;
e eu percebi
o que dizias:
nós somos
como ladrões.
Esta é a roda dentada
o pastel na paleta de intenções
o fogo imperturbável
a centrifugação que desaloja impurezas
o acostumado torpor na anestesia da matilha
o carvão alisado na folha de almaço
a inspiração que se perde na boca de água
o modo que não se convence da moda
uma escada íngreme sem cuidados
o mosto que amputa o intemporal
a beleza encerrada nos curros
(fugitiva dos Homens)
o manual de conversação
o impecável instrumento do consentimento
o barril à espera de manteúdo
os dedos trémulos na forca do medo
o penhor de toda a lucidez
o manuscrito sem titulação
(passado a tinta da China)
a tenaz que apara o desassossego.
Esta
é a palavra dita
à revelia de conjeturas.
Pesa o sinédrio arcaico
no dorsal esmaecido
vitrina também gasta
do coloquial projeto de dia
na vez da indigência dos feitores
que ofende as balsas onde fermentam
as palavras imprudentes
o préstimo dos arbustos sem dono
a partitura onde se desenham versos
o avião longínquo
acertando no céu sem reticências.
Convoquem-se os ardinas
para que à luz nova tragam notícias.
Não interessa que notícias são;
se um dia quadrar com ausência de notícias
podemos interrogar a hibernação
ou o dia em capitulação?
Dolosos
os destroços armadilhados
nos templos inacessíveis
onde se tornam forasteiros
os contumazes devedores da alma
na contrafação dos espíritos.
Os ossos falam mais baixo
sussurram
o vencimento do dia
à medida
que as pessoas desenham seus vestígios
e sem mossa
se recolhem aos aposentos.
É fim de semana,
exclama o operariado,
exausto.
Amanhã
será trunfo outra rotina;
um sábado escaninho
a desautorização das horas
um estribo para o avesso da alma
um lampejo de outra fadiga.
Os destroços
são sempre armadilhados
– sempre dolosos
(e,
não por acaso,
dolo
é anagrama
de lodo).
A boca sem fogo
eterniza o frio da pele.
Enche-se de ar,
a boca,
para emudecer.
Ao tirocínio das coisas
falta a pedra angular
um farol de perseverança
a metade do caminho por alisar;
o silêncio quimérico
de uma boca emudecida
pelo frio glacial
que a paralisa,
falta.
Aperaltado
o janota fumiga
fantasmas avulsos
conversa com botões
desaparafusa consumições.
Não há nada
como ser apessoado
– alvitrou
com a ufania em alta,
sintonizado
com um espelho magnânimo
mas judiciosamente falaz.
O aperaltado janota
até no pijama esmerava
fazendas das melhores circunscrições
não olhando ao estipêndio exigível:
assim como assim
os sonhos
(asseverava,
de si para si mesmo,
com uma solenidade,
vá lá,
parlamentar)
merecem uma cama a preceito
e era nele que os sonhos se desabotoavam;
o apessoado deitar
era a tença a preceito,
a convocatória dos sonhos.
Quanto ao demais
nunca chegou a saber
se sob o verniz pimpão
o pano de fundo
quadrava com a janotice.
Não seja
por contraste
a fecunda estafeta de um nome;
não seja
por diletante tomado
o estroina sem apeadeiro;
não seja
por mitomania almejado
o suserano que está na moda;
não seja
por inveja
a árvore existencial destronada
por excluídos da colheita;
não seja
em abandono deixada
a menina perene
enquanto órfã amanhece a bandeira;
não seja
tristonha a maré
enquanto da maresia sobram os seixos;
não seja
estimada a loucura
por sucedânea da morte.
[Crónicas do vírus, CCCI]
Não é
uma corrida contra o tempo;
levará a palma
aquele
que menos mentir a si mesmo.
A vida é uma.
A vida é una.
À vida
uma vénia.
A vida
é um vitral.
A vida
não é venal.
A vida
é viável.
A vida
é visível.
A vida
não quebra
à ameaça huna.
A vida
bebe no húmus.
A vida
é a vida.
Há vida.
Um ávido viva
à vida.
Primavera-me,
disseste.
Como na polinização
as abelhas
intuem uma entrega,
primavera-me.
Eu
obediente
como sabes
ser minha linhagem
fiz de ti
rainha mestra
não sem antes
te primaverar.
A boca rasga
as palavras.
Tende-as
no sol ganancioso
a fala consuetudinária
em surdina.
A boca rasga-se
nas palavras.
Fabrica um lago mirifico
onde assentam intenções
vagos delírios sem aviso
o efeito de estufa
em forma de abismo.
O que seria de nós,
sem boca
e palavras?