21.10.20

#1770

[Crónicas do vírus, CCCXLII]

 

Do oráculo

dos profetas da catástrofe:

doravante 

seremos apenas

fotocópias do que fomos.

20.10.20

Contentor: destino incógnito

Por que se confunde

castigo com punição

se os dois se entaramelam

numa nebulosa aflição?

 

Por que se aviva

o raio no limite do sol

se a trovoada se esconde

na cortina de obstruídas nuvens?

 

Por que se fala de tudo

na praça onde alta se nota a vozearia

se os alarves peritos se fundem

no impreciso palavreado?

 

Por que adormecem no estio

as bestas desemparelhadas

se os campinos estouvados

pedem meças na estultícia?

 

Por que se cultivam

os abraços e os corpos entrelaçados

se é no sexo

que eles se agigantam?

 

Por que assobiam estrofes

os desamantes sem espelho

se é no fojo sem batismo

que açambarcam os enteados da lógica?

 

Por que fingem os foragidos

que são estetas da compulsão

se a sua contumácia

é nosso deleite?

#1769

[Crónicas do vírus, CCCXLI]

 

A espuma dos paradoxos,

se para uns 

o tempo se funde no nada

e para outros 

teima em demorar-se.

19.10.20

Jardim zoológico

Era todos os dias:

o animal exótico

fora do habitat

exposto aos olhares 

em vez de sujeito

objeto com moldura de aberração.

Boquiabertos humanos

tratando-o como troféu

selado no bilhete do recinto.

E o animal

contristado e sem remédio

só não indiferente

porque odiando

profundamente

os humanos.

#1768

[Crónicas do vírus, CCCXL]

 

O que fazemos?

O que sempre aprendemos:

a sobreviver.

18.10.20

#1767

[Crónicas do vírus, CCCXXXIX]

 

As memórias felizes.

Antes que a nostalgia

seja desterrada.

17.10.20

#1766

[Crónicas do vírus, CCCXXXVIII]

 

Efeitos primários:

a exposição demorada à pandemia

causa

baratas tontas na política.

16.10.20

Visita guiada

Visita guiada

ao parapeito onde se deita

o dia fruído:

ninguém deseja a sua Bastilha

nem um copo de leite azedo

ou o larvar bocejo que afiança

desinteresse.

Ninguém se manifesta

a favor das contrariedades

nem se propõe como Sísifo

que do vale sobe 

ao mais alto miradouro.

Destas visitas guiadas

tomamos conhecimento

como mnemónica do seu antídoto.

#1765

[Crónicas do vírus, CCCXXXVII]

 

Já há países

que proibiram

o amor. 

15.10.20

Silêncio estrutural

Sento-me no vão do silêncio

onde o vulcão se ri das fronteiras

e nenhum passaporte tem validade. 

Sento-me à porta da falcoaria

onde as facas estão líquidas

e o vinho se desimpede

na fermentação ávida do jogo 

com desregras. 

Sinto o medo a ecoar na boca

as suas sílabas arrastam-se

como portões enferrujados

que se desenjaulam da maratona do fogo. 

Sinto que cavalgo no silêncio

e dá-me preço para ser testemunha

de um outro silêncio desautorizado

o modesto encargo

do silêncio 

que atraiçoa o silêncio estrutural.

#1764

[Crónicas do vírus, CCCXXXVI]

 

Quantas mortes,

as havidas e as que pendem,

são precisas

para castrar as liberdades? 

14.10.20

Intenção

Fixo

os dentes

no povoado

onde esquálidas

prosseguem as virgens.

 

Determino

os verbos

na gramática

onde esquecidas

erram as metáforas.

 

Provoco

a maresia

no mar grosso

onde esperançosas

se soerguem musas. 

#1763

[Crónicas do vírus, CCCXXXV]

 

Os promíscuos

ainda são

promíscuos?

#1762

[Crónicas do vírus, CCCXXXIV]

 

Empenhados

no estalão da sorte

(ou do seu antónimo)

meros peões 

de um jogo de acasos.

13.10.20

Alcáçova

Por onde me escondo

na atalaia dos desacertos

em conjuração com as armas embestadas

que alisam as páginas altivas. 

Angariem-se cicerones avalizados

para a meã partilha do moderno

esconjurando as balizas arcaicas

devolvendo ao mosto pútrido

os anciãos que fogem da báscula do tempo

penhores da imodéstia dos Homens 

no seu refúgio apalavrado 

em versos sem curadoria. 

Pois se mecenas somos

é no dorso audível das caravanas 

onde se desmata o pretérito

que perdeu o paradeiro.

#1761

[Crónicas do vírus, CCCXXXIII]

 

Desta vez

é de vez

atores todos,

involuntários.

12.10.20

Pratas no prego (e demais decadência alinhavada)

Sem a custódia dos ogres

que a mão sensível

não tem mesura.

 

O corrimão heráldico

tem o seu avesso:

finas 

as filigranas

em corpos beócios. 

 

Nunca houve juramento

dos jumentos encartados

que se disfarçaram 

de pergaminhos distintos 

    – e não era carnaval. 

#1760

[Crónicas do vírus, CCCXXXII]

 

O gume

morde no pescoço,

asfixia o silêncio.

11.10.20

#1759

[Crónicas do vírus, CCCXXXI]

 

Como numa estrada de montanha:

à descida até ao vale

segue-se tortuosa subida.

10.10.20

#1758

[Crónicas do vírus, CCCXXX]

 

Diz-se

que da transfiguração

somos devedores,

mas as vidas continuam 

visíveis.

9.10.20

Atalaia

Estes são os emolumentos:

a fazenda sem remendos

um copo pronto

o beijo mareado a tempo

a glória do tempo por haver

a matéria-prima dos piratas sem pejo

a versátil varanda 

de onde se agasalha o dia restante

o corpo hasteado. 

Um bom negócio

por estes modestos 

emolumentos. 

#1757

[Crónicas do vírus, CCCXXIX]

 

Passamos

a falar

por onomatopeias.

 

(Devo terminar

com um ponto de interrogação?)

8.10.20

Sal e pimenta

Minha faço a ilusão

do arrojo no gesto desalinhado

na improvável feição do dia órfão.

 

Que nenhum tributo seja devido

aos anciãos que chegam a destempo

aprisionados em suas gólgotas 

apenas à espera do golpe final.

 

Ouso pronunciar

a ancianidade procrastinada

uma dádiva como espórtula

ao incalculável sopesar do viver.

 

Viver

em militante contrário de marés

tal como o polegar

sempre em contramão

da mão a que pertence.

#1756

[Crónicas do vírus, CCCXXVIII]

 

Aprendemos

uma nova gramática

como território a habitar.

7.10.20

O corpo e o despensamento

Desfaço o corpo

em nuvens circenses

o tópico de uma coreografia

sem costuras

gutural

a umbria que se acotovela

na indiferença

à procura de equinócio

à procura

do santuário onde se sublimam

os prazeres.

Desfaço-me do corpo

e sinto ficar 

apenas

com o despensamento.

#1755

[Crónicas do vírus, CCCXXVII]

 

Foi feitiço

de loucas Tágides

ou vingança

dos deuses enlouquecidos?

6.10.20

Bola negra

Uma bola atirada aos impropérios

 

(bola negra)

 

juízo sem juízo

ou 

simples artefacto à procura de artesão

a meio da selva tonitruante

onde os relâmpagos se apagam

na boca cheia de fogo

dos déspotas.

Impurificam-se as avarezas

 

(bola negra)

 

e o cinzel adestra as formas

no torneado deslumbramento

que enxameia a matilha dos ufanos:

sem o ardil do espelho industriado

não são famosas

as formas manifestadas

 

(bola branca!).

 

O resto

Fica para a diáspora

E para os seus diletos fautores

 

(bola negra, bola negra!).

#1754

[Crónicas do vírus, CCCXXVI]

 

Ecos da desumanidade

agora que somos

e em incremento

bonecos de plasticina.

5.10.20

#1753

[Crónicas do vírus, CCCXXV]

 

Ninguém ainda pode dizer

se a peste que grassa 

vai perder

a sua desgraça.

#1752

[Crónicas do vírus, CCCXXIV]

 

Um salto

no vazio

e sem arnês.