[Crónicas do vírus, CCCLXI]
Isto vai uma desgraça
para os noctívagos
e os boémios da praça.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Um bocejo
a garganta à mostra
como se o beneplácito assomasse
ao inferno
e dele se soubesse
por interposta entidade
as letras em ebulição a destempo.
A pistola
doada à ferrugem
angústia emancipada do coldre
e os vetustos cowboys
esquecidos na vespertina alusão
ao atlas arcaico.
As máscaras
contrariados açaimes
na reinvenção do tempo e do modo
pesadelo vivo na varanda dos viventes
castração
e
ao mesmo tempo
contrafeita báscula da incolumidade.
[Crónicas do vírus, CCCLIX]
Já não é só poesia
ou filme de ficção:
a noite foi colonizada
pela ausência.
Não é a matilha
que comanda o Norte
é, que se saiba, a anilha
a desencomendar a morte.
Podes desaprovar a pandilha
antes que ela do chá aborte
e devolvê-la à erma ilha
onde o litigar tem um corte.
Sobra um rosto na vasilha
e no muro uma palavra em transporte
para então silenciarmos a cavilha
e às mãos darmos aquela cor forte.
E se nos olhos da filha
alcanças um grande porte
não feches a escotilha
abraça essa grande sorte.
Um Calígula
disfarçado de rosto
estampado no peito dos jovens
de herói fazendo de conta
apascenta a maré de ilusões.
Um Calígula
que se desce à praia
mouchão de verbo pantanoso
cancioneiro que paredes envenena
nos sonhos perdidos
de adolescentes.
Um dia
serei dança
no nevoeiro da floresta.
Um dia
serei poema
em aberta maresia.
Um dia
serei arguto
em vinho eflúvio.
Um dia
serei manhã
à espera de seres noite.
Um dia
serei espada
a trespassar o desejo.
Um dia
serei voz
no segredo da tua fala.
Um dia
serei mãos
em desatada corda.
Um dia
serei vetusto
em teu invulnerável regaço.
Um dia
não serei morte
no penhor do teu imorredoiro rosto.
[Crónicas do vírus, CCCLXI]
Somos remidos do parentesco
estranhos uns dos outros
ou imersos no seu esquecimento.
[Crónicas do vírus, CCCLX]
Quem nos protege
de quem nos quer
proteger?
(Inspirado numa crónica de António Roma Torres no Público, e adaptado às circunstâncias)
Um esboço de ideia
interino
a dádiva jogada contra a dúvida
no quartel destronado
por pajens arrependidos.
As costuras da ideia
levantam-se
de um chão enlodaçado
dão vivas à janela que é um peito
descarnado.
Já vai o tempo
em que destemidos figurantes do verbo
se agigantavam
entre o código amuralhado
e a apatia semântica
estilhaçando-o
em víveres de indiferença.
Não se cobre já a nostalgia
que os relógios ainda não estão a destempo.
As juras juram a juras precedentes
que não voltarão a jurar.
É o retrato ideal
da humanidade,
o erro grosseiro
escapando entre os dedos
à medida
que uma certa estultícia
retira do passado o seu paradeiro.
Código morse:
recriam a linguagem
os anões apoderados
sob o olhar tétrico
das fadistas mudas
deserdadas de estrofes.
Código morse:
ciciam as viúvas
desoladamente desamparadas
nos murais onde se acertam as lágrimas
alijadas de seus consortes
em juras eternas
de amores nunca acontecidos.
Do código morse
sobram os vestígios de sons
uma remota eloquência em hipótese
a linguagem por cifrar.
Dei a fala ao gatilho
e ele empunhou miosótis
as suas pétalas
um poema contra
a decadência.
É o amanhã!
(Alguém exclamou)
Está a morder as bainhas
do todo-impoderoso saber
os destroços embainhados
no projeto de passado
sem as juras por inventariar
e os projetos por sair do estirador,
para não falhar.
Não é da fazenda puída
que contam os dedos válidos
nem da cruz alvoraçada
que se terçam mentiras.
Que se emalhem os pertences
(não há equívoco,
caro leitor:
o verbo é
emalhar)
no episódico insurgir da maré,
não por acaso chamada
maré-viva,
que o ponto de cruz
emoldura
para memória futura
os estragos da viva maré.
E depois
não há quem inquira
por que sortilégio do idioma
(ou distração dos peritos)
a uma maré destas
assim devastadora
se chama
maré-viva,
se tantas vezes o que espalha
é morte.
Muda
a consoante,
antes que a consoante
fique muda.
Contra a mudez
em remoinho
os novelos da fala
pouco podem terçar.
Mas se a consoante emudece
não perde ela serventia:
experimente-se outra extração
a consoante tornada invisível
e digam
se não faz falta
a consoante muda.
Fica provado:
um silêncio
é
(por vezes)
fala não tumular.
Regressado da ausência
reponho a hierarquia.
Anoto
as pessoas que passam
os rostos que vertem
uma quota de parecença
a paridade não desdenhada.
Anoto
o módico esvoaçar do dia
que esbraceja contra
a entediante peregrinação do mesmo
e colhe
abertamente lúcido
a flor válida que se oferece
à janela já não mitigada.
Diz-me
se a fala
é desta boca
ou apenas de um síndico
que papagueia as sílabas disformes
de uma fala sem passaporte.
Diz-me
se os morangos estão doces
e na fruteira se exibem os frutos
à espera da madurez.
Diz-me
que tenho ouro nas mãos
e que sabes ser santuário
com a procuração do meu corpo.
Diz-me
que não somos mudos ao outono
e que somos a fogueira que apaga o frio
enquanto a noite se demora na sua escassez.
Diz-me
que os dias são todos diferentes
e que o teu peito como ancoradouro
é a justa recompensa para o lugar porfiado.
E diz-me
antes que emudeça a noite
que atravessamos os carris desalinhados
subimos aos promontórios inacessíveis
desenhamos os mapas contingentes
fazemos rimas com o amparo das gargalhadas
e anoitecemos entrelaçados
como alimento recíproco
as almas desapoquentadas que se incensam
na luz não pálida apalavrada
pelas nossas bocas distintas.
Diz-me
que somos o étimo da singularidade
e dos dedos uníssonos
estilhaçamos os contratempos
e compomos as estrofes algorítmicas
que povoam o nosso espaço vital.
Diz-me
acima de tudo
o tudo que sobe à boca
sem que sobre nada por dizer.
Diz-me
em perene derrota
do silêncio castrador.