3.1.21

#1854

[Crónicas do vírus, CDXXVI]

 

Alvíssaras

à argamassa 

do povo.

2.1.21

Anátema

A frívola 

facilidade

com que se confunde

felicidade

com facilidade.

#1853

[Crónicas do vírus, CDXXV]

 

Joga-se o trunfo

à espera que seja 

centelha.

1.1.21

#1852

[Crónicas do vírus, CDXXIV]

 

Neófito,

tem autoridade o ano

para a remissão?

31.12.20

#1851

[Crónicas do vírus, CDXXIII]

 

Dois mil e vinte,

game over?

30.12.20

Montemuro

Do lado certo 

a montanha desenha-se na luz.

Rasgos de crueldade

na tribuna de um rebanho

 

(qual será a primeira rês

a deixar de contar

no inventário dos vivos?)

 

Amortecem a urze sob os cascos

com o mais alto patrocínio

do cão tutelar.

A neve arrancada ao chão

dissimula-se

nos ventres opados

como se fossem vitaminas órfãs

só à espera da confirmação do algoz.

Será rubra

a neve ensarilhada

sob o jugo do punhal severo.

Será assim tingida

a abundante água

vertida pela serra. 

A narrativa congemina-se:

não é crueldade

é o oximoro

da beleza serrana.

#1850

[Crónicas do vírus, CDXXII]

 

A euforia

no logro

do destempo? 

28.12.20

#1849

[Crónicas do vírus, CDXXI]

 

A euforia

na pauta

da vacina. 

27.12.20

Porte

O porte turvado

silhueta, 

apenas:

ou um corpo dissolvido

na bruma retesada

o domínio arrumado

no avesso de um verso.

E, contudo,

os lobos exibem-se,

famintos,

dançando no fio da água.

Não amedrontam

em seu porte

avulso.

#1848

[Crónicas do vírus, CDXX]

 

O estranhamento

ainda não se desentranhou.

26.12.20

#1847

[Crónicas do vírus, CDXIX]

 

Sobramos metade

da fração 

que já éramos.

25.12.20

#1846

[Crónicas do vírus, CDXVIII]

 

Do cerco contumaz

reféns

(ainda) desarmados.

24.12.20

Psicologismo anti anti-natalício

O bolo-rei

tem má fama.

As rabanadas

têm má fama.

Os sonhos e as filhoses,

também têm má fama.

As famílias

que são os seus próprios anticorpos

têm má fama.

A febre do consumo

que desmede afetos

ou prova favores

tem má fama.

O beatismo da época

tem má fama.

As juras de metamorfose

(apalavradas na ressaca da época)

têm má fama.

As árvores ornamentadas

têm má fama.

As ruas iluminadas

têm má fama.

O natal

não tem culpa nenhuma.

#1845

[Crónicas do vírus, CDXVII]

 

Atirados

para a clareira

no banho coletivo

de salvação.

23.12.20

Open space

Havia um número

(escondido)

que tinha o rosto

da tolerância.

Mantive-o em segredo 

 

– e não foi por gula

ou egoístico bem-perder:

 

queria que esse número

fosse da minha lavra

sem o avesso da linguagem cifrada

nem a pretensão desilustre 

dos marçanos sem roda.

Um número,

privativo:

diamante desencontrado

na floresta de números

nem primo nem esteta

nem estulto nem primacial.

Só um número anunciado,

mas sem revelação,

espaço sem limites

dicionário à espera de apeadeiro;

sangue que se encontra

por dentro de mim.

#1844

[Crónicas do vírus, CDXVI]

 

Começa a parecer

o jogo da cabra cega.

22.12.20

Prisão

Pagaste por todos os crimes;

e quanto pagaste?

Seriam os soldos avençados

Em privação do sol desimpedido

paga suficiente

para tão corrosivos labéus?

 

Em tua defesa:

a mirifica idade meandra 

bálsamo para a estroinice

o lagar onde fermentava

a loucura imanente.

 

Foras servil

da tua própria crueldade.

 

Lá fora

os de memória acesa

protestavam:

nem todas as prisões chegam

para a paga de que és devedor.

 

Aceitaste.

De ti

ninguém saberia o som

do rogo de comiseração.

 

Sabias

melhor do que ninguém

que o caudal de crueldades

e o teu incorrigível orgulho interior

empatavam a súplica.

#1843

[Crónicas do vírus, CDXV]

 

Só falta

o legislador

decretar-nos 

corpos forasteiros. 

21.12.20

Age retarding

Era com o bolor

das contracapas:

o vigor dissolvido

no apogeu do a.a.

(antes do amarelecimento)

enquanto esperava

por decadência maior.

A lombada podia

disfarçar;

por dentro

embainhado o gasto

e os ossos doídos

no sarau da fadiga diuturna,

devolvia-me ao nada.

Isto das salgas

onde se desconta o tempo

devia ser um conto:

Nnarrativa meã

ou um disfarce

atirado ao rosto

da senescência,

tão cheia de audácia.

#1842

[Crónicas do vírus, CDXIV]

 

Em cima dos nossos destroços

um cimento por reinventar?

#1841

[Crónicas do vírus, CDXIII]

 

A metamorfose da peste

a desafiar

o nosso atrevimento.

20.12.20

Ode aos medíocres

Não sejam modestos

os medíocres.

O seu lampejo

é a sindérese da poluição

o opulento arroto

que maltrata uma estrofe.

Mas que continuem,

fulgurantes,

a ser espécie protegida:

que seria dos pontos cardeais

se a antítese fosse dissolvida?

#1840

[Crónicas do vírus, CDXII]

 

O rastilho

para sermos

de uma natureza diferente?

19.12.20

#1839

[Crónicas do vírus, CDXI]

 

As vacinas,

para tingir

a esperança.

#1838

[Crónicas do vírus, CDX]

 

Um calafrio

torpedeia o adquirido:

já não se pode confiar

no natural.

18.12.20

O futuro devorado pelo passado

Nadamos no desterro

à altura mais rasa

do que se pode conceber. 

As colheres dançam

nos filhos das cortinas

e vê-se

que do encardido que levam

as cortinas estão atrasadas

para a lavandaria. 

Por vezes

do areópago mais elevado

sentencia-se:

“como é possível ter aquelas ideias?”

E eu,

que no segredo do meu íntimo

desterro tão atávicas ideias,

apetece-me

(se caísse no logro dos pesporrentes

e como eles fosse tão pesporrente)

destinar 

também ao desterro

a intolerância dos intolerantes

com os intolerantes. 

#1837

[Crónicas do vírus, CDIX]

 

Proibiram a passagem de ano:

eis os termos definitivos

da conspiração contra os boémios.

#1836

[Crónicas do vírus, CDVIII]

 

Proibiram a passagem de ano.

Há quem queira 

estender a validade

do ano pestífero.

17.12.20

Caravela

Seria caravela

nos confins

da desmemória.

Leve no gesto

dançando 

na rima da água.

Seria caravela

fantasma insentido

à procura de paradeiro.

Ágil a terçar o vento

pressentindo

o corpo futuro.

#1835

[Crónicas do vírus, CDVII]

 

Quando saberemos

da morada das tréguas?