[Crónicas do vírus, CDXXXII]
Casino ou carrossel
uma certeza embolsamos:
estamos perdedores.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Todas
as palavras
contam.
É nesta
aritmética suada
que habito.
E se contam
as palavras todas
subo aos contos
narrador acidental
embriagado
com o vocabulário sedoso,
emoldurado.
Com
todas
as palavras
contadas
no vagar das sílabas
chamando
os nomes
e as coisas
nelas desenhando
os rostos
os corpos
um amontoado de equações
amanhecidas
na contabilidade das palavras.
[Crónicas do vírus, CDXXX]
(Uma)
Tragédia dos comuns
– e como a expressão
se tomou de propriedade.
Pontos nos is
para que vos quero?
Pois
se na Turquia
há is que não levam ponto
e não consta
que a Turquia tenha sido
desqualificada.
Pontos nos is
mordaça institucionalizada
a pedir uma re-gramática
(pois se
há quem dispense pontos finais
e outros
dos parágrafos fazem tábua-rasa
e outros ainda
desconhecem maiúsculas
como inauguração de orações);
pois
os is mantêm validade
mesmo que venham amputados
de pontos
e ninguém nos pediu
para vertermos os pontos nos is
pois
tudo ficou aclarado
no cancioneiro do entendimento:
nos is sem pontos
que is se continuam a ter.
[Crónicas do vírus, CDXXIX]
O povo
a fazer a vontade
aos adágios que vulgarizou:
à segunda onda
segue-se a terceira,
sem demora.
Povoadas as floreiras
com o suor ungido
ajardina-se o verbo
nas cicatrizes consuetudinárias.
Um punhado de artes,
ou apenas o inescrúpulo larvar,
cimentam a pele emaciada:
se dantes
os canteiros desenhavam as cores
agora
entediam-se com o macilento rosto
da invernia que não se apieda.
A ossatura entoa os queixumes,
rima com a duração plúmbea
que agiganta os pesares
pelos soalheiros dias.
Sozinhos
os dias breves
remedeiam-se
à medida que as cinzas das lareiras
fazem cama
ao esquecimento.
Do lado certo
a montanha desenha-se na luz.
Rasgos de crueldade
na tribuna de um rebanho
(qual será a primeira rês
a deixar de contar
no inventário dos vivos?)
Amortecem a urze sob os cascos
com o mais alto patrocínio
do cão tutelar.
A neve arrancada ao chão
dissimula-se
nos ventres opados
como se fossem vitaminas órfãs
só à espera da confirmação do algoz.
Será rubra
a neve ensarilhada
sob o jugo do punhal severo.
Será assim tingida
a abundante água
vertida pela serra.
A narrativa congemina-se:
não é crueldade
é o oximoro
da beleza serrana.
O bolo-rei
tem má fama.
As rabanadas
têm má fama.
Os sonhos e as filhoses,
também têm má fama.
As famílias
que são os seus próprios anticorpos
têm má fama.
A febre do consumo
que desmede afetos
ou prova favores
tem má fama.
O beatismo da época
tem má fama.
As juras de metamorfose
(apalavradas na ressaca da época)
têm má fama.
As árvores ornamentadas
têm má fama.
As ruas iluminadas
têm má fama.
O natal
não tem culpa nenhuma.
Havia um número
(escondido)
que tinha o rosto
da tolerância.
Mantive-o em segredo
– e não foi por gula
ou egoístico bem-perder:
queria que esse número
fosse da minha lavra
sem o avesso da linguagem cifrada
nem a pretensão desilustre
dos marçanos sem roda.
Um número,
privativo:
diamante desencontrado
na floresta de números
nem primo nem esteta
nem estulto nem primacial.
Só um número anunciado,
mas sem revelação,
espaço sem limites
dicionário à espera de apeadeiro;
sangue que se encontra
por dentro de mim.
Pagaste por todos os crimes;
e quanto pagaste?
Seriam os soldos avençados
Em privação do sol desimpedido
paga suficiente
para tão corrosivos labéus?
Em tua defesa:
a mirifica idade meandra
bálsamo para a estroinice
o lagar onde fermentava
a loucura imanente.
Foras servil
da tua própria crueldade.
Lá fora
os de memória acesa
protestavam:
nem todas as prisões chegam
para a paga de que és devedor.
Aceitaste.
De ti
ninguém saberia o som
do rogo de comiseração.
Sabias
melhor do que ninguém
que o caudal de crueldades
e o teu incorrigível orgulho interior
empatavam a súplica.
Era com o bolor
das contracapas:
o vigor dissolvido
no apogeu do a.a.
(antes do amarelecimento)
enquanto esperava
por decadência maior.
A lombada podia
disfarçar;
por dentro
embainhado o gasto
e os ossos doídos
no sarau da fadiga diuturna,
devolvia-me ao nada.
Isto das salgas
onde se desconta o tempo
devia ser um conto:
Nnarrativa meã
ou um disfarce
atirado ao rosto
da senescência,
tão cheia de audácia.