18.4.21

Cartão de cidadão

O nome 

embebido

sem homem na meada.

 

O homem

sem nome embebido

plástico.

 

Embebido

o nome órfão

no homem a prazo.

17.4.21

#1981

[Crónicas do vírus, DLIII]

 

Agora

já somos

(definitivamente)

professores de metamorfose.

16.4.21

Assimetria

Ouve-se o ciciar de vultos perenes. 

Não se traduz em palavras sufragadas,

o ciciar. 

Na lonjura da planície

os lobos depositam o uivar

enquanto fogem das mandíbulas

dos mastins mais do que eles. 

Que não haja fingimento deste xadrez 

que sobe constantemente à cena:

 

é um jogo de algozes e presas

e às vezes troca-se de lugar. 

 

Serão as vozes enformadas 

inábeis consumidoras das imagens sem freio

à espera de portagens extintas?

Os embaraços fustigam a ideia do presente. 

Açambarcam a fala

deixada numa fratura exposta

e as sílabas ensonadas 

são a metamorfose de perguntas. 

Ah!

Não sei que paradeiro hei de dar

dos loucos 

que desafiam as gastas arestas do mundo. 

Invejo-os,

os loucos sem saberem da simetria das regras

nem dos penhores que organizam a obediência. 

 

Os risos ecoam no espaço à volta. 

Mas não há rostos

não há matéria sensível

a cortar centímetros entre os lugares. 

Há um labirinto que foge da mediana

contra o ultraje que desvia os olhos

e deixa-os hipotecados na hibernação. 

Mas os vultos perenes 

não deixam de se fazer notar;

 

inclinam-se vagarosamente,

matéria sem ossos, 

para trás e para a frente,

como se fossem maestros implícitos 

da colheita que se repete

todos os dias. 

#1980

[Crónicas do vírus, DLII]

 

Será a força de vontade

a tradução de um delírio?

#1979

[Crónicas do vírus, DLI]

 

Nem que seja

pelo prelo de decreto,

o viés do passado.

15.4.21

1x1

Em fogo larvar

o dó sem partida

imarcesce no goto das veias.

 

Não há resgate das almas

no chão lunar das profecias vãs

nem se chamam os nomes certos

aos meãos hesternos

escondidos em seus lúgubres lugares. 

 

O mundo 

é pequeno:

 

“deixem-me sair daqui”

 

diz-se à boca grande

como se ela abocanhasse o mundo

e ele, enfim,

medrasse por dentro do húmus interior.

 

O mundo

é pequeno:

 

e na vertigem do carrossel

já sem distinguir a música ligeira

as teimas tiradas no sargaço do futuro.

 

Vamos ao fundo das luzes

e trazemos a lava agarrada

o ingrediente singular

nas abóbadas do plural.

#1978

[Crónicas do vírus, DL]

 

Legifere-se

a esperança 

– o voluntarismo do legislador

dobrará o braço da peste.

14.4.21

Bulldog

Dou à pele

um mar de corsário

um cortejo sem pajens

no rumor dos dias pensados.

Habito entre as marés

antes que de Neptuno seja refém

e nos calabouços das ideias

arrumo as minhas,

antes que sejam desarrumação infiel. 

É nestes mares adestrados por meus olhos

que vinham os erros colossais,

matéria antecipada

nos provérbios armadilhados. 

Sou eu 

– não sei – 

em povoados sem idioma

sulcando a geografia notária dos postais

enquanto as cavidades ancestrais amarelecem,

puídas pela estouvada correria do tempo. 

Sou eu

sentinela dos marinheiros órfãos

apólice contra os naufrágios,

com a mão domando o mar encrespado

antes que revire os olhos

e se torne furibundo. 

No meu vocabulário

não encontro espaço para a melancolia. 

Não arranjo as avarias,

que as obras diletantes dos sacerdotes da vida

previnem a perfeição. 

Sou eu 

– o puramente imperfeito

mastro em que se hasteia o pólen 

do que há de ser

alma à procura de o ser

ou vulto desossado de uma alma frágil. 

Deixo de herança

o esquecimento de mim,

desexemplo por excelência

o fugitivo que verte tinta nas nuvens, 

o mentor do nada

que em improfícuos mergulhos

traduz montanhas perfumadas a azul. 

Eu,

o corsário inábil

gato furtivo sem gente por perto

modesto embaixador do etéreo

entre talhadas de loucura servidas em mão

e páginas esquecidas no torniquete da memória. 

Eu,

essoutro à procura de paradeiro

na vinificação dos espíritos desatrelados. 

À espera de vez,

à espera de monções do tempo

servidas sem arnês,

na possibilidade do desdito

sem encorpar se não nas estrofes

de um vate sem nome próprio.

#1977

[Crónicas do vírus, DXLIX]

 

Das cinzas

em que vivemos sepultados

à procura da nossa custódia.

13.4.21

O elmo incapaz

Se a cabeça

coubesse num elmo

podia disfarçar as cicatrizes

que a corrompem.

Mas o elmo

não cabe na cabeça

e recusa ser pretexto

para as cicatrizes que a arruínam.

#1976

[Crónicas do vírus, DXLVIII]

 

Seremos apenas

contrabando

mal estejam escritas

as memórias da peste.

12.4.21

Boca a mais

A boca estilhaçada

recolhe os beijos luxuosos

no átrio do futuro.

Emudece

enquanto se extasia

com os beijos carnudos.

É ela

sacerdotisa que amplifica as cores

é ela 

que costura os beijos diamante

o idioma de todos os falantes.

A boca completa

depois de beijada

já não é contumaz

nem erra pelo fino fio que a separa

do abismo.

Deixou de ser 

estilhaçada.

#1975

[Crónicas do vírus, DXLVII]

 

E se as vacinas

não forem o joker?

11.4.21

Desfiladeiro

Acordo no dorso da noite

contra o tumulto da tempestade. 

 

Estreito os braços até à chuva

na condição de com ela dançar

já que a solidão é nome da noite

e não é em seu nome a coreografia. 

 

Arrasto os pés desastrados

e no palco combinado

afago a chuva intempestiva. 

 

Dançamos. 

 

Dançamos na hora repleta

os corpos de chuva suada

perfumam a solidão que invadiu 

a noite. 

 

Como se fôssemos eruditos

e a palavra 

se fundisse nos gestos sublimes

em cada passo desarticulado

com que ornamentamos a noite. 

 

O resto

fica por nossa conta.  

#1974

[Crónicas do vírus, DXLVI]

 

Antes morrer

que esmorecer.

(Simpósio da impaciência)

10.4.21

Videirinhos que ficam no lugar errado da História

Dizem que há derivas

que são dádivas.

e poltrões

que são pulsões

 

(ou pulgões,

já não tenho a certeza).

 

Também há feirantes

que são farsantes.

E ele há figurões

que não passam

de figurinhas:

 

(menos que peões 

no xadrez em que se fazem passar

por reis com coroas escarlates 

– ou serão apenas de plasticina?)

 

mentiras por dentro de mentiras

na safra de uma verdade infértil

cuspindo,

des-ca-ra-da-men-te,

no rosto de uma multidão 

de mãos atadas.

#1973

[Crónicas do vírus, DXLV]

 

As vozes 

emudecidas

convocam-se

insubmissas. 

9.4.21

O sonho em matéria

Juntam-se os braços

na pontuação das páginas

e os misteres 

animados por feixes de luar

angariam os açaimes sem rosto,

apenas uma curiosidade antropológica

(diz o oráculo: assim há de ser).

O chão sua de tanta inspiração.

Colhe os títulos

arrastados sem glória

nas mangas gastas dos verbos precários.

Essa é a força braçal

o magma inebriante 

arrancado às profundezas

sem estatuto nem paradeiro

um beijo 

que se leva da boca sem medo

no sonho

que se materializa.

#1972

[Crónicas do vírus, DXLIV]

 

Afogados nas mascarilhas

na posse do alibi permanente,

a dizermos

“não fui eu”.

8.4.21

Livre da luta

Luta. 

Luta livre. 

Luta,

livre dos calos 

da luta. 

Luta livre,

no livreto desfolhado

da ausência de armas. 

Livre

sem a luta como nome

no lisérgico desempoeirar

à luz mediana. 

Uma livre luta. 

Livre da luta. 

Livre.

#1971

[Crónicas do vírus, DXLIII]

 

A moldura do medo

evaporada

nos dedos da inquietação.

7.4.21

Kizomba beligerante

A espada canta

os silêncios trespassados

no cofre onde se confere 

o dilúvio.

A espada não é certa,

no mosto avinagrado

onde se desfazem as palavras.

A espada

não fala.

Falam por ela

os guerreiros,

de alma em riste

empenhados à loucura.

Muitos sabem ser da espada

a palavra final.

#1970

[Crónicas do vírus, DXLII]

 

Liberdade condicional,

o tanto quanto

desejamos.

6.4.21

O rastilho não conta

O chão caiado

com as flores moribundas

da buganvília

 

(não é um ladrilho da decadência

nem a agonia

cuspida da boca de um vulcão)

 

é o mosaico da imortalidade

o tapete púrpura

que recebe o corpo marmoreado

a invetiva contra a defunção.

 

(Ou a sepultura

a que apetece doar 

o corpo desarmado.)

#1969

[Crónicas do vírus, DXLI]

 

Excessos de vontade

esbarram

na fraqueza da memória.

(Ou no esquecimento do tirocínio?) 

#1968

[Crónicas do vírus, DXL]

 

Em força para as esplanadas

como os néscios 

vão ao mar sem saberem nadar.

5.4.21

Desacerto

Quantos decibéis

tem a manhã

que fala em meu nome?

Todos 

os que se amontoam

na véspera das juras

enquanto o tempo avivado

não se cumpre.

Quantos arco-íris 

são precisos para a tela 

onde tem estampagem

o rosto sem disfarce?

Todos 

os que reúnem

as cores que as divindades orquestraram

mais as que junto ao inventário

enquanto as bocas ciciam

os segredos sem nome por perto.

#1967

[Crónicas do vírus, DXXXIX]

 

Filhos da impaciência,

endossamos a espera

para os juros de mora 

do tempo sem garantia.

4.4.21

As luzes que efervescem

Efervescem as luzes

devolvendo os porquês

que nas trevas tinham cessado.

Sem saber da simetria dos cabos

uma enseada clara apurou o sortilégio

e erradicou o inverosímil adeus.

As luzes

na sua maturidade

acusam os vultos pela insónia rebelde

e não se atemorizam com represálias.

As luzes

que efervescem

são as mesmas que irradiam 

das almas que não se rendem.

#1966

[Crónicas do vírus, DXXXVIII]

 

À revelia do medo

a multidão que se anuncia 

ao mar.