15.6.21

Re-gramática

Hoje em dia

ontem em noite

amanhã em manhã

depois de amanhã é tarde

(para a lógica da semiótica).

14.6.21

#2041

[Crónicas do vírus, DCXIII]

 

Entre o salto em frente

e a marcha-atrás que pende

a encruzilhada que não se desfaz.

13.6.21

Tarefa

Encho a minha sombra

com a fala sem adiamento.

Navego nas palavras

pendurado nas sílabas 

povoadas pela boca.

A minha sombra

tem a caução das mãos

e adeja sobre o avesso de mim.

Não seria nada

na ausência de uma sombra. 

#2040

[Crónicas do vírus, DCXII]

 

A janela sobre o futuro

à medida 

de um campo desminado.

12.6.21

O retrato dos derribados

A tortura 

que se disfarça

no avesso das pálpebras

enquanto os olhares adormecem

entre os esbirros que se calam. 

Se houvesse um perfeccionista sistema

e as ruas nunca precisassem de higiene

ninguém seria refém da mudez

ninguém seria penhor 

do seu próprio medo. 

Em vez disso

a anestesia geral:

os rostos obedientes 

as palavras sempre domadas

e o princípio geral do respeito

os verbos enevoados do amesquinhar 

sem direito a protesto

no dócil orquestrar de uma gadaria

sob a direção de maestros meãos.

#2039

[Crónicas do vírus, DCXI]

 

Uma odisseia

com muitos decibéis,

que delas não temos 

desábito.

11.6.21

Rasante

Caderno de encargos:

tirar o avesso do por-do-sol

desenhar as páginas

com palavras irredutíveis

comprar o hoje no leilão do passado

abrir as janelas enquanto o sol se valida

nascer no úbere da vida

atirar os dados contra o cais folgado

avivar o estuário com a boca faminta

despenhar num abismo sem mapa

estiolar o medo contumaz

servir de chão aos poetas 

(ou ser poeta entre as palavras chãs)

ser o sal que o mar demanda

amanhecer a qualquer hora do dia

agradecer aos desdeuses 

que se povoam no vazio

imaginar os socalcos tatuados na cal

tratar o amanhã por tu;

e prometo:

virar a vaca do avesso.

#2038

[Crónicas do vírus, DCX]

 

O desmedo

em velocidade de cruzeiro,

ou ainda a destempo?

10.6.21

#2037

[Crónicas do vírus, DCIX]

 

Só não nos vacinamos

contra nós mesmos.

9.6.21

#2036

[Crónicas do vírus, DCVIII]

 

Os dias inteiros

convocam

a avidez das vidas.

Fugitivo

Um fugitivo

não sabe de cor

as armas em que se dissolve

a angústia.

Não aprende

nem por tentativa e erro

o ritual que o empossa,

resistente,

contra mastins que coabitam

na melancolia.

Um fugitivo

não é um pária.

É arquiteto das suas escolhas

refém da sua vontade.

Um fugitivo

fala pelas omissões.

Distingue-se

dos que fingem assiduidade

e desertam em comissões venais,

mascarados de hipocrisia.

Os fugitivos

só fogem de si mesmos.

Que não se abata sobre eles

a exprobração.

8.6.21

#2035

[Crónicas do vírus, DCVII]

 

Já é pré-pós-peste

e os países

ainda pregam partidas

uns aos outros.

7.6.21

Fora de lei

Que sabíamos dos compêndios

onde vertidos estão os códigos de conduta?

Antes que os costumes 

se assenhoreassem da palavra nossa

precipitaríamos a fala insubmissa:

no desdém das convenções

subimos a parada no estado avulso da vontade. 

E em alamedas ornamentadas com jasmim

evocaríamos o futuro rebelde

em suas rimas impuras. 

Alguém nos pediria

que déssemos a autoria 

a um destes códigos de conduta. 

Não,

é o que diríamos

a esta improvável hipótese

pois língua de trapos não é do nosso domínio.

#2034

[Crónicas do vírus, DCVI]

 

Juram:

a miragem será apenas

arqueologia do vocabulário.

6.6.21

Conferência

O tempo vigilante

não deixa portas

por tecer. 

 

O tempo diligente

não responde

pelos ausentes. 

 

O tempo não subserviente

é o torno onde se emoldura

o esquecimento. 

 

O tempo ausente

a dádiva improcedente

no arrojo dos altivos. 

 

O tempo pungente

o cais em fuga 

da pertença. 

 

O tempo farsante

penhor dos olhares

em falta.

#2033

[Crónicas do vírus, DCV]

 

A peste,

a virar

países contra países.

#2032

[Crónicas do vírus, DCIV]

 

Da impaciência dos negócios

aos arrufos diplomáticos.

5.6.21

#2031

[Crónicas do vírus, DCIII]

 

Estamos

entre viver a vida

e deitar muito a perder.

4.6.21

O come sílabas

Não é tolice

soletrar os nomes

ao correr do relógio ímpar.

Todas as sílabas

merecem sufrágio

e deixar algumas pelo caminho

é a identidade dos trapalhões. 

 

(E quem gosta 

de ter um trapalhão 

como mandante?)

#2030

[Crónicas do vírus, DCII]

 

Afinal a História

sempre se repete.

(Ou: o moderno ultimato britânico) 

3.6.21

Tecelagem

Perseguia a manhã sem nome

e dei às mãos sedentas

a tua silhueta. 

 

A enseada escondia os segredos murmurados. 

 

À altura do entardecer

pedimos água à pele suturada 

com o suor do dia. 

 

Dissemos:

 

este 

é o tempo 

de que somos procuradores

um remoinho sem vento por dentro

os dentes à mostra

decifrando todas as sílabas

no Norte 

sem fim.

#2029

[Crónicas do vírus, DCI]

 

Um jogo de espelhos

para que nos seja devolvida

a imagem

que nos foi expropriada.

2.6.21

Dissidência

Não fosse

o verbo puído;

 

não estimasse

o mosto sofrido;

 

não imaginasse

o nome corroído;

 

não contemplasse

o tempo condoído;

 

não chamasse

o mar derrogado;

 

não prometesse

o ás não falado;

 

não inventasse

o medo açambarcado;

 

não derrubasse

o muro embuçado;

 

não desdissesse

o sábio empertigado;

 

não rejeitasse

o corpo desarmado;

 

não fugisse

do cais empenhado;

 

não fingisse

um sobressalto adiado. 

#2028

[Crónicas do vírus, DC]

 

Sobrestimamos os juízos

até sermos intérpretes do naufrágio

(outra vez).

1.6.21

Des-qualquer coisa

Não se me sejam insinuadas

desideias, 

que me desalmo. 

 

Em caso de desaprovação

desigualo os empatas

só para seguir com a desambição

de desandar à retaguarda. 

 

Não desarrumo as desavenças

não por apetite de desnorte

mas por tributo à derrota da desunião. 

 

Nem que venham a medrar

desideias 

desalinhadas no desatino.

#2027

[Crónicas do vírus, DXCIX]

 

As janelas respiram

o ar dantes vedado.

31.5.21

Pacífico

Uma bala perdida

é a prova de vida dos inocentes. 

Numa câmara de sombras

onde vagueiam vultos serenos

o coldre vazio é o aval

das noites perdidas na angústia do medo. 

Mesmo a tempo

de as mãos sinceras

serem a represa onde se estilhaçam 

as balas perdidas. 

#2026

[Crónicas do vírus, DXCVIII]

 

Da descida aos infernos

à reabilitação da casta,

o intervalo da desmemória. 

30.5.21

Estatutário

Navegas nesta cordilheira

se não te falharem 

os ouvidos-intempérie.

 

Se endossasses o referendo

não se te saberia o sal sem sono;

sabes

ao menos

que não te empenhas às marés sem rosto

nem naufragas nas sílabas proteladas. 

 

Teu é o domínio

que se empareda no astrolábio banal,

a promessa colossal 

aos dias sem nome.

#2025

[Crónicas do vírus, DXCVII]

 

Do nacionalismo às avessas:

o dia 

em que os forasteiros

puderam fazer 

o que nos é proibido.