Prometido:
um bilhete
para a salvação.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
É a pega
que agarra o mundo
pelos seus deslimites.
O santuário onde se respira
o ar que não tem janelas.
O encantamento
com o sangue ávido
que transborda as fronteiras do corpo.
O cais onde se agarram
as mãos que já não são trémulas.
Os lábios devolvem as sílabas
à medida do caudal que se congemina,
estrutural.
Que as árvores estão pendidas
sobre o pensamento diuturno
é a legenda que se arrasta em rodapé;
não serão os serões acostumados
à diligente insónia
que desmentem os presságios do passado;
outro tanto dirão das rosáceas
que fermentam os corpos ajuramentados,
antes que sejam apenas uma lutuosa recordação.
As mãos,
que se dizem ávidas,
recortam os atlas
por onde se materializa a voz.
São o aval da invisível consagração
os nomes por haver no tabuleiro das incógnitas
o húmus onde se inventa a fertilidade
a noite sem fronteiras.
[Crónicas do vírus, DCLXIII]
Quando nos devolverem o que éramos
teremos na mesma
duas pernas e dois braços
dois olhos e dois ouvidos
uma boca e uma pele?
O corso sedentário
transita pela cordilheira sem métrica.
Protestam contra as distâncias
e o caminho sinuoso.
Umas vozes avulsas
arrepiam o que parece umas preces.
Dir-se-ia
preces para apressar
o termo da peregrinação.
(Ou então
para se convencerem
que é má moeda
o sedentarismo das ideias.)
[Crónicas do vírus, DCLXII]
Se,
enfim,
se pressagia a liberdade,
pode-se,
então,
reconhecer o sequestro.
O vulto hipoteca-se na maré baixa.
Vozes em surdina condenam-no.
As hipóteses redundantes são marca de água.
As outrora sequelas hoje são reminiscências.
O poço ganhou um fundo.
Abrilhantou-se com as sombras furtivas.
Através delas as vozes falam versos fecundos.
O ocaso já não é uma angústia.
Levita no seu avesso as propriedades valiosas.
Fala, só por si.
Uma impressão digital ao acaso.
Sem vultos por perto.
O gelo senta-se na memória
converte as mãos em sílabas cortantes
e os corpos ululantes envergam
uma fala singular.
Levo o fogo perene
às costas da montanha;
não sei se é lava o hálito dos velhos
se as viúvas choram a solidão como conforto
se os cães vadios não têm fome
ou toda a roupa é inútil para abrigar o medo.
É o piano que fala agora.
Tudo o que diz é ímpar na pureza
cais que dançam em uníssono com as ondas
e um magistério de desinfluência
que assalta os viciados no poder.
Podia ser a água tépida
mesmo no meio da paisagem de gelo
a arrumar as sílabas num santuário sem morada
ou apenas eu
imerso na nudez de mim mesmo
já não contrafação de um algoz sem presa
preparado para a morada sem código postal.
[Crónicas do vírus, DCLIX]
Um salto no tempo:
no anteparo da mudança
ou na irradiação do sempre?
Escrevo de trás para a frente
a desalma sem modo
que se penhora no desmedo.
O destempo não se mede
no avesso da fala
nem a mudez se compõe
numa gramática banal.
Arranjo as flores arrancadas ao crepúsculo
e noto
que o crepúsculo ficou amputado
e só lhe fica bem.
Escrevo
de trás para a frente
e não é por medo:
oxalá fossem os lutos
a muralha modesta dos farsantes
e das suas lágrimas não tresmalhadas
sobrasse
o frágil fermento dos fortes.
Os tolos
enganam-se
com colos
antes que sejam
bolos
na paráfrase de seus miolos.
Os boémios
não sabem o que são
proémios
e a meio do caminho juntam-se
aos prémios
antes que os forcem a ser abstémios.
Os videntes
tropeçam em baças
lentes
antes que da próxima profecia
os dentes
se partam por serem mitómanas mentes.
Os famosos
tão feericamente efémeros
levados por invejosos
a meio da peleja com a catadura
dos delituosos
em pária condição dos efemeramente fogosos.
Os ufanos
rejeitam
os maus panos
que de fazendas se fazem entendidos
nos canais insanos
onde regozijam com os deletérios arcanos.
Intimo o deus da vontade a falar.
Não espero arranjos a meu favor.
A espera não será civilizada.
Os brutos verbos amontoam-se
numa rua com o chão encardido,
como se estivesse minado.
Intimo o deus da vontade a falhar.
Sempre foi minha ambição
estar ao nível de deus.
Bebo
a maresia
dos teus olhos
na manhã remota.
Nado
no nevoeiro
dos teus cabelos
entre os lençóis vagos.
Respiro
os verbos
selados pelo teu corpo
no jardim efémero.
Anoiteço
a aritmética
nos teus sonhos
sob a vigilância da lua.
Parto em vantagem.
A algibeira recheada de alma
no desfiladeiro onde se desfazem
os medos.
Parto em vantagem:
pode não ser modo de o dizer
na folhagem varrida pelo vento
que se arquiteta no chão cansado;
mas digo-o sem disfarce
depois de exorcizadas as farsas
que se alardeavam no céu sem estribeiras.
Depois mando notícias
sobre a vantagem
de partir em vantagem.
Não são os cães vadios
que mordem nos parapeitos da noite.
Não são os peixes sem nome
que anoitecem as areias da praia.
Não são os que procuram redenção
que glosam o livro das profecias.
Não são as viúvas enlutadas
que possuem as sílabas claras.
Não são aspirantes à fama
que falam com a língua desembaciada.
Não são as luzes esforçadas
que colonizam a noite baça.
Não são as vozes mortificadas
que ladram o dia em glória.
Diziam ser a trigonometria dos párias:
a misantropia consagrada
imersa numa coroa de hibiscos dourados
e o verbo que contaminava as águas puras
enquanto se apressavam
na estatura que ninguém gostava de ter.
Na equação entravam insultos,
o ostracismo indolor
e uma convocatória para a solidão.
Os párias
não precisavam de negociar
com esta trigonometria.
Eram os seus infatigáveis percursores.