17.8.21

Da antipatia com Narciso

A celebridade confessou

com jactância e comoção:

“eu gosto que os outros gostem de mim”.

 

Eu cá prefiro 

que os outros

não saibam do meu paradeiro.

#2109

[Crónicas do vírus, DCLXXXI]

 

Legados da peste (5):

o penoso inventário

dos danos imateriais.

16.8.21

Perífrase

Sem a trincheira

evapora-se o cais sem medo. 

Seguem-se 

os remédios banais

à espera que amanhã seja

apenas

uma repetição. 

Não se diga do sarcasmo

que bolça as suas vítimas;

somos nós

procuradores da imprudência

que jogamos o trunfo 

a nosso desfavor. 

Por isso

não contamos catedrais;

só contamos

as pedras em que caímos.

#2108

[Crónicas do vírus, DCLXXX]

 

Legados da peste (4):

uma anestesia

com efeitos duradouros?

15.8.21

Sintoma

A partida

é do avesso do cais

onde a fuligem decai

e as palavras se tornam verbos.

 

Viajo

nas varandas de um corcel

entre a neve vertida na planície

e a promessa que ferve no sangue.

 

A chegada

é num lugar sem paradeiro

onde a boca encontra consulta

e a fala se agiganta no silêncio.

#2107

[Crónicas do vírus, DCLXXIX]

 

Uns mastins

desdentados de lucidez

a fingirem 

a conspiração da peste.

14.8.21

#2106

[Crónicas do vírus, DCLXXVIII]

 

Uma profecia do apocalipse 

– ou o apocalipse dos oráculos.

13.8.21

Patrão na costa

O deslumbramento

no copo vazio da obviedade

rima

a meias

com a finura das prosápias

das sumidades que embelezam

a pública praça. 

O púlpito a eles,

ó meãos súbditos que andais a leste,

que precisais de guias gratuitos. 

Ato contínuo

não esqueçais a imperativa genuflexão

que a gratidão é virtude que se não inflaciona 

e os gurus não estão ao serviço

apenas para de seus corpos sentirem

do calor uma irradiação. 

Não vos canseis do bom conselho,

ávidos que estais de recomendáveis bússolas,

para que possais emprestar um seguimento

ao vosso devir. 

#2105

[Crónicas do vírus, DCLXXVII]

 

Haverá sempre 

teorias da conspiração

e os autores das teorias da conspiração.

12.8.21

A fidelidade pode ser baixa?

Alta fidelidade.

Alta.

Fidelidade.

Fidelidade alta.

 

(Ou fidelidade em alta

se houvesse páginas

para retalhar.)

 

E baixa fidelidade,

também se engaça?

E a

fidelidade baixa

é possível arrematar?

 

(Se houvesse tempo

para perguntar ao tempo

e se os praticantes da semiótica 

– e os totens das almas 

estilhaçadas pelo desamor – 

não estivessem de férias.)

#2104

[Crónicas do vírus, DCLXXVI]

 

Legados da peste (3):

a consciência

da nossa imensa

fragilidade.

11.8.21

MNE

Nunca souber dizer

por que o ministro dos negócios estrangeiros

é ministro

dos negócios estrangeiros. 

Se a diplomacia não é 

se não

uma pedra no sapato dos negócios

e se os negócios 

(no estrangeiro ou fora dele)

transbordam a diplomacia,

continuo sem saber

se o ministro dos negócios estrangeiros

não é apenas

o ministro do fingimento

o ministro que terça a hipocrisia

entre as nações

o ministro que disfarça ressentimentos

atrás do biombo da semântica

o ministro da propaganda das virtudes pátrias

o ministro cuidador das dores de alma.

Um ministro

oximoro.

#2103

[Crónicas do vírus, DCLXXV]

 

Legados da peste (2):

dois passaportes,

pois as fronteiras

passaram a ser internas.

10.8.21

Sobre a inutilidade das memórias

Não sou de escrever as memórias.

Não sei descrever as memórias.

Não sei do paradeiro do passado. 

Mas sei-me presente

no tempo que é presente,

a menos que o fingimento

seja a luva que cobre a minha mão.

Não olho nos interstícios do devir. 

Não sei calcular o tempo

que não conheço. 

Não sei quantas sílabas tem o amanhã

ou se vem tingido e de que cor. 

Não sei da linhagem dos versos

que notificam o futuro. 

Não saberia 

sequer

imaginar as memórias do porvir

por mais mnemónicas que calhasse na maré. 

Espero em espera

com a paciência desembainhada

recebendo com hospitalidade

a silhueta do tempo andante. 

As memórias

são a confirmação 

de uma ausência. 

#2102

[Crónicas do vírus, DCLXXIV]

 

Da violência como cerco

poucas teriam sido 

as palavras terçadas.

9.8.21

Pirotecnia

Escrevo as escadas

com as minhas mãos

vertendo as palavras carisma

no ato não doloso da confiança. 

Vejo nas escadas

o que o horizonte esconde

e dos meus dedos sobressaem

as flores que mobilizam o magma

no estio que não dói

na dor que se veste do avesso

até que das escadas cimeiras

proclame 

a minha intensa dissidência.

#2101

[Crónicas do vírus, DCLXXIII]

 

Legados da peste (1):

certificados,

como o gado.

8.8.21

Conceptualização

A prateleira

não é onde se posterga

o passado.

A prateleira

é onde se tirocina

o futuro.

#2100

[Crónicas do vírus, DCLXXII]

 

O consentimento

quase a ser devolvido

aos seus tutores.

7.8.21

Graduação

O que se penhora

nas dádivas que confiam 

nos eremitas impensáveis?

 

A geografia da alma

não aprende com o caudal matinal. 

Se em vez de um idioma sem voz

falasse por palavras brancas

podia tomar em mãos o dicionário

e fazia com que o dia fosse pecúlio. 

 

Sei que o aluvião arroteia o rosto cansado:

o entardecer arruma as impurezas

e os olhos ensinam a lucidez

que não se aprende nos manuais. 

As flores atiram-se contra a maré alta. 

Transigem com os nós de espuma

que a nortada ensaia,

enquanto as peças do puzzle se insubordinam

na levedura da noite. 

 

No tribunal do esquecimento

traduzo as cicatrizes da alma

(as minhas,

que as dos outros me são desconhecidas).

O céu entediado

responde com o acobreado que pressagia

o crepúsculo. 

 

Por dentro do torpor,

o olhar diluído no horizonte,

ouço o magma que crepita

nas profundezas. 

Pergunto

se sou eu

o compositor do devir

ou se me devo cingir

à resplandecente indiferença. 

 

À minha volta

um cerco de palavras

desarruma a gramática. 

Tomo por fundo

a aviltante grandeza ostentada fora de mim

o astucioso desfazer de armas

em que sou pária. 

Se soubesse costurar a desfala

atirava as fotografias havidas

para o panteão das desmemórias. 

 

À falta de melhor

conto as páginas

do calendário.

#2099

[Crónicas do vírus, DCLXXI]

 

A renúncia,

em vias de extinção.

6.8.21

#2098

[Crónicas do vírus, DCLXX]

 

Desafinados ainda,

os violinos 

resgatados do bolor

do crepúsculo demorado.

5.8.21

Copo meio cheio

Não era a página que rasurava;

era o vértice das palavras

que em si eram vertidas

o lamento fraco na dobra da folha

em juras 

que não remediavam o despassado.

 

Conseguia beber o vinho à prova

de um trago só;

não aproveitava o verbo pueril

que ele desconhece esse verniz.

Em vez de uma tardia censura

traduzi os remorsos 

através das vírgulas que depunham

a meu favor:

eram repetidos os clamores

mas não tinha a feição dos seus penhores

não conseguia deles fazer inventário.

 

À margem,

como em laterais rodapés,

perseguia a franqueza que se escondia

do rosto da página.

Será que diria:

oxalá estivessem a consulta pública

os rodapés laterais 

que se escondem

sob minha custódia?

#2097

[Crónicas do vírus, DCLXIX]

 

Está em falta o armistício

para a letargia da peste.

4.8.21

Biombo

Que diremos do mel

se a boca da abelha

é um leito de morte?

 

O beijo do escorpião

não precisa

do escorpião.

#2096

[Crónicas do vírus, DCLXVIII]

 

A peste

prestes a ser arrumada

no quarto dos fundos.

3.8.21

Descavilhado

Serpenteia o rio

cavando as encostas. 

Ninguém diga

que amestrada é a paisagem;

é feita de convulsões sucessivas

como se a alvorada tivesse sido corrompida

por deuses anónimos,

deuses impreparados na arte cénica do belo

deuses párias 

que se esgotaram na emblemática

sopa servida aos de espírito desavençado. 

Prostrado por tanta paisagem fidalga

sinto o corpo transido

e ele próprio

desamestrado.

#2095

[Crónicas do vírus, DCLXVII]

 

(Variante do #2094)

 

Dos biombos

o espólio do futuro.

#2094

[Crónicas do vírus, DCLXVI]

 

Dos biombos

não se consumirá

a saudade.

2.8.21

#2093

[Crónicas do vírus, DCLXV]

 

É comovente

o esforço de muitos

(donos de espaços dançantes)

para salvar o Verão.

Não consta

que o Verão tenha pedido

para ser salvo.