23.8.21

#2116

[Crónicas do vírus, DCLXXXVIII]

 

Legados da peste (10):

as impossibilidades

convivem numa fronteira sem limite. 

22.8.21

#2115

[Crónicas do vírus, DCLXXXVII]

 

Amoral da História:

a História

não tem mural.

21.8.21

Bala #11

O desmentido implícito

cimenta a mentira

contra o jugo dos hinos

que a desmentem

no leito da narrativa oficial

que deixa em banho-maria

os cínicos que o não sabem ser.

 

São estes os mantimentos

que advertem contra fantasmas 

que apenas são fantasmas.

 

As palavras são uma tibieza

quando fingem as mentiras que são.

#2114

[Crónicas do vírus, DCLXXXVI]

 

Legados da peste (9):

fomos portadores

de um futuro essencial.

20.8.21

#2113

[Crónicas do vírus, DCLXXXV]

 

A menos que surtam

inesperadas marchas-atrás

só falta saber

quando é o grito do Ipiranga.

#2112

[Crónicas do vírus, DCLXXXIV]

 

Legados da peste (8):

muito sangue

a ser combustível

da História do futuro. 

19.8.21

As ruas sem nome

As ruas estilhaçam o sol tardio. 

Amparadas na desesperança

as pessoas avançam contra o dia soturno. 

Não esperam por nada. 

Caladas

esgotam o chão parado

onde esperam pelo autocarro

antes que seja dia de trabalho

 

(antes 

que seja a vez 

de a rotina ter voz).

 

Se fosse pela noite marítima

crepuscular

impávida se iluminada pelo farol da barra

as mentiras escondiam-se de si mesmas. 

Antes fosse um lugar preso ao mar

sem as amarras da terra. 

Antes fossem as horas 

o ponto cardeal vertiginoso

a faca madura que raspa todas as cicatrizes

deixando o mapa sem arestas. 

Noturna-se a fala

no vértice diametral do medo. 

As horas não são uma vertigem:

vagarosas

parecem arrastar o passado

colonizando todo o tempo

que as mãos conhecem.

#2111

[Crónicas do vírus, DCLXXXIII]

 

Legados da peste (7):

as bolas de cristal

a perquirir 

sobre a morfologia da peste.

18.8.21

Rua Sésamo (pois que sésamo os petizes ainda podem saborear)

Saí em fiança

discípulo de parte incerta

que de minha culpa não considerei

o paradeiro. 

Se fosse a forca o pedestal correto 

– diz-se, em dedução pouco convincente – 

o sino da obediência seria um lugar de paz

e a desordem apenas um avatar

para futura memória. 

Mas em fiança

alcatifei uma recusa metódica

e do alçapão das proibições fui exilado,

antes que,

derrotado pela vergonha do que seria,

não fosse se não 

desarmado capataz por inércia. 

Por isso não foi exorbitante

o preço da fiança;

o exercício da liberdade

não tolera a letargia

e o consentimento tácito é a tuneladora

que enterra

e de vez

a maré caudalosa de onde se extraem

os direitos de quem se considera um ser,

um ser de corpo e alma inteiros,

que não capitulam na arena

dos ardilosos regentes.

#2110

[Crónicas do vírus, DCLXXXII]

 

Legados da peste (6):

o abismo maior

entre acríticos obedientes

e lunáticos cercados por conspirações.

17.8.21

Da antipatia com Narciso

A celebridade confessou

com jactância e comoção:

“eu gosto que os outros gostem de mim”.

 

Eu cá prefiro 

que os outros

não saibam do meu paradeiro.

#2109

[Crónicas do vírus, DCLXXXI]

 

Legados da peste (5):

o penoso inventário

dos danos imateriais.

16.8.21

Perífrase

Sem a trincheira

evapora-se o cais sem medo. 

Seguem-se 

os remédios banais

à espera que amanhã seja

apenas

uma repetição. 

Não se diga do sarcasmo

que bolça as suas vítimas;

somos nós

procuradores da imprudência

que jogamos o trunfo 

a nosso desfavor. 

Por isso

não contamos catedrais;

só contamos

as pedras em que caímos.

#2108

[Crónicas do vírus, DCLXXX]

 

Legados da peste (4):

uma anestesia

com efeitos duradouros?

15.8.21

Sintoma

A partida

é do avesso do cais

onde a fuligem decai

e as palavras se tornam verbos.

 

Viajo

nas varandas de um corcel

entre a neve vertida na planície

e a promessa que ferve no sangue.

 

A chegada

é num lugar sem paradeiro

onde a boca encontra consulta

e a fala se agiganta no silêncio.

#2107

[Crónicas do vírus, DCLXXIX]

 

Uns mastins

desdentados de lucidez

a fingirem 

a conspiração da peste.

14.8.21

#2106

[Crónicas do vírus, DCLXXVIII]

 

Uma profecia do apocalipse 

– ou o apocalipse dos oráculos.

13.8.21

Patrão na costa

O deslumbramento

no copo vazio da obviedade

rima

a meias

com a finura das prosápias

das sumidades que embelezam

a pública praça. 

O púlpito a eles,

ó meãos súbditos que andais a leste,

que precisais de guias gratuitos. 

Ato contínuo

não esqueçais a imperativa genuflexão

que a gratidão é virtude que se não inflaciona 

e os gurus não estão ao serviço

apenas para de seus corpos sentirem

do calor uma irradiação. 

Não vos canseis do bom conselho,

ávidos que estais de recomendáveis bússolas,

para que possais emprestar um seguimento

ao vosso devir. 

#2105

[Crónicas do vírus, DCLXXVII]

 

Haverá sempre 

teorias da conspiração

e os autores das teorias da conspiração.

12.8.21

A fidelidade pode ser baixa?

Alta fidelidade.

Alta.

Fidelidade.

Fidelidade alta.

 

(Ou fidelidade em alta

se houvesse páginas

para retalhar.)

 

E baixa fidelidade,

também se engaça?

E a

fidelidade baixa

é possível arrematar?

 

(Se houvesse tempo

para perguntar ao tempo

e se os praticantes da semiótica 

– e os totens das almas 

estilhaçadas pelo desamor – 

não estivessem de férias.)

#2104

[Crónicas do vírus, DCLXXVI]

 

Legados da peste (3):

a consciência

da nossa imensa

fragilidade.

11.8.21

MNE

Nunca souber dizer

por que o ministro dos negócios estrangeiros

é ministro

dos negócios estrangeiros. 

Se a diplomacia não é 

se não

uma pedra no sapato dos negócios

e se os negócios 

(no estrangeiro ou fora dele)

transbordam a diplomacia,

continuo sem saber

se o ministro dos negócios estrangeiros

não é apenas

o ministro do fingimento

o ministro que terça a hipocrisia

entre as nações

o ministro que disfarça ressentimentos

atrás do biombo da semântica

o ministro da propaganda das virtudes pátrias

o ministro cuidador das dores de alma.

Um ministro

oximoro.

#2103

[Crónicas do vírus, DCLXXV]

 

Legados da peste (2):

dois passaportes,

pois as fronteiras

passaram a ser internas.

10.8.21

Sobre a inutilidade das memórias

Não sou de escrever as memórias.

Não sei descrever as memórias.

Não sei do paradeiro do passado. 

Mas sei-me presente

no tempo que é presente,

a menos que o fingimento

seja a luva que cobre a minha mão.

Não olho nos interstícios do devir. 

Não sei calcular o tempo

que não conheço. 

Não sei quantas sílabas tem o amanhã

ou se vem tingido e de que cor. 

Não sei da linhagem dos versos

que notificam o futuro. 

Não saberia 

sequer

imaginar as memórias do porvir

por mais mnemónicas que calhasse na maré. 

Espero em espera

com a paciência desembainhada

recebendo com hospitalidade

a silhueta do tempo andante. 

As memórias

são a confirmação 

de uma ausência. 

#2102

[Crónicas do vírus, DCLXXIV]

 

Da violência como cerco

poucas teriam sido 

as palavras terçadas.

9.8.21

Pirotecnia

Escrevo as escadas

com as minhas mãos

vertendo as palavras carisma

no ato não doloso da confiança. 

Vejo nas escadas

o que o horizonte esconde

e dos meus dedos sobressaem

as flores que mobilizam o magma

no estio que não dói

na dor que se veste do avesso

até que das escadas cimeiras

proclame 

a minha intensa dissidência.

#2101

[Crónicas do vírus, DCLXXIII]

 

Legados da peste (1):

certificados,

como o gado.

8.8.21

Conceptualização

A prateleira

não é onde se posterga

o passado.

A prateleira

é onde se tirocina

o futuro.

#2100

[Crónicas do vírus, DCLXXII]

 

O consentimento

quase a ser devolvido

aos seus tutores.

7.8.21

Graduação

O que se penhora

nas dádivas que confiam 

nos eremitas impensáveis?

 

A geografia da alma

não aprende com o caudal matinal. 

Se em vez de um idioma sem voz

falasse por palavras brancas

podia tomar em mãos o dicionário

e fazia com que o dia fosse pecúlio. 

 

Sei que o aluvião arroteia o rosto cansado:

o entardecer arruma as impurezas

e os olhos ensinam a lucidez

que não se aprende nos manuais. 

As flores atiram-se contra a maré alta. 

Transigem com os nós de espuma

que a nortada ensaia,

enquanto as peças do puzzle se insubordinam

na levedura da noite. 

 

No tribunal do esquecimento

traduzo as cicatrizes da alma

(as minhas,

que as dos outros me são desconhecidas).

O céu entediado

responde com o acobreado que pressagia

o crepúsculo. 

 

Por dentro do torpor,

o olhar diluído no horizonte,

ouço o magma que crepita

nas profundezas. 

Pergunto

se sou eu

o compositor do devir

ou se me devo cingir

à resplandecente indiferença. 

 

À minha volta

um cerco de palavras

desarruma a gramática. 

Tomo por fundo

a aviltante grandeza ostentada fora de mim

o astucioso desfazer de armas

em que sou pária. 

Se soubesse costurar a desfala

atirava as fotografias havidas

para o panteão das desmemórias. 

 

À falta de melhor

conto as páginas

do calendário.