[Crónicas do vírus, DCLXXXVIII]
Legados da peste (10):
as impossibilidades
convivem numa fronteira sem limite.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCLXXXVIII]
Legados da peste (10):
as impossibilidades
convivem numa fronteira sem limite.
O desmentido implícito
cimenta a mentira
contra o jugo dos hinos
que a desmentem
no leito da narrativa oficial
que deixa em banho-maria
os cínicos que o não sabem ser.
São estes os mantimentos
que advertem contra fantasmas
que apenas são fantasmas.
As palavras são uma tibieza
quando fingem as mentiras que são.
As ruas estilhaçam o sol tardio.
Amparadas na desesperança
as pessoas avançam contra o dia soturno.
Não esperam por nada.
Caladas
esgotam o chão parado
onde esperam pelo autocarro
antes que seja dia de trabalho
(antes
que seja a vez
de a rotina ter voz).
Se fosse pela noite marítima
crepuscular
impávida se iluminada pelo farol da barra
as mentiras escondiam-se de si mesmas.
Antes fosse um lugar preso ao mar
sem as amarras da terra.
Antes fossem as horas
o ponto cardeal vertiginoso
a faca madura que raspa todas as cicatrizes
deixando o mapa sem arestas.
Noturna-se a fala
no vértice diametral do medo.
As horas não são uma vertigem:
vagarosas
parecem arrastar o passado
colonizando todo o tempo
que as mãos conhecem.
[Crónicas do vírus, DCLXXXIII]
Legados da peste (7):
as bolas de cristal
a perquirir
sobre a morfologia da peste.
Saí em fiança
discípulo de parte incerta
que de minha culpa não considerei
o paradeiro.
Se fosse a forca o pedestal correto
– diz-se, em dedução pouco convincente –
o sino da obediência seria um lugar de paz
e a desordem apenas um avatar
para futura memória.
Mas em fiança
alcatifei uma recusa metódica
e do alçapão das proibições fui exilado,
antes que,
derrotado pela vergonha do que seria,
não fosse se não
desarmado capataz por inércia.
Por isso não foi exorbitante
o preço da fiança;
o exercício da liberdade
não tolera a letargia
e o consentimento tácito é a tuneladora
que enterra
e de vez
a maré caudalosa de onde se extraem
os direitos de quem se considera um ser,
um ser de corpo e alma inteiros,
que não capitulam na arena
dos ardilosos regentes.
[Crónicas do vírus, DCLXXXII]
Legados da peste (6):
o abismo maior
entre acríticos obedientes
e lunáticos cercados por conspirações.
A celebridade confessou
com jactância e comoção:
“eu gosto que os outros gostem de mim”.
Eu cá prefiro
que os outros
não saibam do meu paradeiro.
Sem a trincheira
evapora-se o cais sem medo.
Seguem-se
os remédios banais
à espera que amanhã seja
apenas
uma repetição.
Não se diga do sarcasmo
que bolça as suas vítimas;
somos nós
procuradores da imprudência
que jogamos o trunfo
a nosso desfavor.
Por isso
não contamos catedrais;
só contamos
as pedras em que caímos.
A partida
é do avesso do cais
onde a fuligem decai
e as palavras se tornam verbos.
Viajo
nas varandas de um corcel
entre a neve vertida na planície
e a promessa que ferve no sangue.
A chegada
é num lugar sem paradeiro
onde a boca encontra consulta
e a fala se agiganta no silêncio.
[Crónicas do vírus, DCLXXIX]
Uns mastins
desdentados de lucidez
a fingirem
a conspiração da peste.
O deslumbramento
no copo vazio da obviedade
rima
a meias
com a finura das prosápias
das sumidades que embelezam
a pública praça.
O púlpito a eles,
ó meãos súbditos que andais a leste,
que precisais de guias gratuitos.
Ato contínuo
não esqueçais a imperativa genuflexão
que a gratidão é virtude que se não inflaciona
e os gurus não estão ao serviço
apenas para de seus corpos sentirem
do calor uma irradiação.
Não vos canseis do bom conselho,
ávidos que estais de recomendáveis bússolas,
para que possais emprestar um seguimento
ao vosso devir.
[Crónicas do vírus, DCLXXVII]
Haverá sempre
teorias da conspiração
e os autores das teorias da conspiração.
Alta fidelidade.
Alta.
Fidelidade.
Fidelidade alta.
(Ou fidelidade em alta
se houvesse páginas
para retalhar.)
E baixa fidelidade,
também se engaça?
E a
fidelidade baixa
é possível arrematar?
(Se houvesse tempo
para perguntar ao tempo
e se os praticantes da semiótica
– e os totens das almas
estilhaçadas pelo desamor –
não estivessem de férias.)
Nunca souber dizer
por que o ministro dos negócios estrangeiros
é ministro
dos negócios estrangeiros.
Se a diplomacia não é
se não
uma pedra no sapato dos negócios
e se os negócios
(no estrangeiro ou fora dele)
transbordam a diplomacia,
continuo sem saber
se o ministro dos negócios estrangeiros
não é apenas
o ministro do fingimento
o ministro que terça a hipocrisia
entre as nações
o ministro que disfarça ressentimentos
atrás do biombo da semântica
o ministro da propaganda das virtudes pátrias
o ministro cuidador das dores de alma.
Um ministro
oximoro.
[Crónicas do vírus, DCLXXV]
Legados da peste (2):
dois passaportes,
pois as fronteiras
passaram a ser internas.
Não sou de escrever as memórias.
Não sei descrever as memórias.
Não sei do paradeiro do passado.
Mas sei-me presente
no tempo que é presente,
a menos que o fingimento
seja a luva que cobre a minha mão.
Não olho nos interstícios do devir.
Não sei calcular o tempo
que não conheço.
Não sei quantas sílabas tem o amanhã
ou se vem tingido e de que cor.
Não sei da linhagem dos versos
que notificam o futuro.
Não saberia
sequer
imaginar as memórias do porvir
por mais mnemónicas que calhasse na maré.
Espero em espera
com a paciência desembainhada
recebendo com hospitalidade
a silhueta do tempo andante.
As memórias
são a confirmação
de uma ausência.
Escrevo as escadas
com as minhas mãos
vertendo as palavras carisma
no ato não doloso da confiança.
Vejo nas escadas
o que o horizonte esconde
e dos meus dedos sobressaem
as flores que mobilizam o magma
no estio que não dói
na dor que se veste do avesso
até que das escadas cimeiras
proclame
a minha intensa dissidência.
A prateleira
não é onde se posterga
o passado.
A prateleira
é onde se tirocina
o futuro.
O que se penhora
nas dádivas que confiam
nos eremitas impensáveis?
A geografia da alma
não aprende com o caudal matinal.
Se em vez de um idioma sem voz
falasse por palavras brancas
podia tomar em mãos o dicionário
e fazia com que o dia fosse pecúlio.
Sei que o aluvião arroteia o rosto cansado:
o entardecer arruma as impurezas
e os olhos ensinam a lucidez
que não se aprende nos manuais.
As flores atiram-se contra a maré alta.
Transigem com os nós de espuma
que a nortada ensaia,
enquanto as peças do puzzle se insubordinam
na levedura da noite.
No tribunal do esquecimento
traduzo as cicatrizes da alma
(as minhas,
que as dos outros me são desconhecidas).
O céu entediado
responde com o acobreado que pressagia
o crepúsculo.
Por dentro do torpor,
o olhar diluído no horizonte,
ouço o magma que crepita
nas profundezas.
Pergunto
se sou eu
o compositor do devir
ou se me devo cingir
à resplandecente indiferença.
À minha volta
um cerco de palavras
desarruma a gramática.
Tomo por fundo
a aviltante grandeza ostentada fora de mim
o astucioso desfazer de armas
em que sou pária.
Se soubesse costurar a desfala
atirava as fotografias havidas
para o panteão das desmemórias.
À falta de melhor
conto as páginas
do calendário.