[Crónicas do vírus, DCCLXXVIII]
Legados da peste (94):
a miragem
tão demandada
é o antídoto cabal.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
O som das árvores
ecoa na planície
o ostensivo ranger de dentes
que pede meças ao silêncio.
Os oráculos, hiperativos,
dedicam-se à prestidigitação do passado
movendo-lhe as costuras
até serem a sombra pálida
do espelho que protesta contra o pretérito.
Os dedos imprevidentes atiram-se ao futuro.
Pecam por defeito:
se as medidas estivessem calibradas
o futuro seria apenas
uma remota lembrança.
[Crónicas do vírus, DCCLXXVI]
Legados da peste (92):
a precipitação,
talvez,
do legado
fará dizer que foi apressado
o legado.
O pano puído
posterga o peditório da fama.
Pendido sobre o pedestal gasto
povoa os fundilhos que se perenizam.
Puído em paráfrases ímpares
o pano pavoneava-se sem porção.
Os corpos pirotécnicos
perdiam-se no pastiche fúnebre
sem perfilharem o seu passado.
O pano puído era a metáfora
do país possível.
[Crónicas do vírus, DCCLXXIV]
Legados da peste (90):
guerrilheiros desafeiçoados
de armas destrunfadas
e, portanto, não terçadas.
[Crónicas do vírus, DCCLXXIII]
Legados da peste (89):
não legado,
apenas interstício,
o morticínio da peste disfarçado
de hibernação.
A boca
traz o palco
em sobressalto.
Calada
morde os lábios
à espera de destronar
o silêncio.
Dela se teme
um abalo telúrico
a ossatura estilhaçada
no rumor da palavra canina.
O sal não está à venda.
Apalavra-se o entardecer
no fio delgado
da memória.
Dessas palavras nunca vãs
há de o silêncio
perder trunfo.
[Crónicas do vírus, DCCLXXII]
Legados da peste (88):
as bandeiras
crismadas pela ferrugem
entronizam
os mastros decadentemente machos.
[Crónicas do vírus, DCCLXXI]
Legados da peste (87):
o disfarce
institucionalizado
(nos açaimes que perduram).
Num abraço de mar
as andorinhas
desenham palavras cintilantes
amesendadas com lírios gastos.
Ao longe
um navio afasta-se;
leva da cidade
a sua pose arrumada
(bem vai precisar dela
que uma tempestade se anuncia
para o alto-mar).
Por cá
ficam os de sempre
na indiferença de sempre.
[Crónicas do vírus, DCCLXX]
Legados da peste (86):
deserdados do passado
à espera
da indulgência do futuro.
Subo ao modo hibernação
não vá ser devorado
pelas forças implacáveis
que afeiam o mundo.
Se houver apeadeiro recomendável
provo o mosto a que for convidado.
Em caso que seja diferente
terço o não
para não ser arrematado fora do prazo.
E se às mentiras forem ditas mentiras
sobre destemporadas a eito
nas masmorras da impureza
que sobre a frugalidade da palavra singular
antes que seja dado vivo
a mastins disfarçados de arcanjos.
[Crónicas do vírus, DCCLXIX]
Legados da peste (85):
enciumados
por não sermos o alvo
jogamos à roleta russa.
Dantes
era enseada
as águas bucólicas
vertendo irrisórias lamentações
em limítrofes umbrais
paradeiro de solitários.
Agora
era emboscada
à mercê de uma maré
investida no embaraço da ira
em vez dos rostos seráficos
das assim vistas tágides.
Amanhã
será evaporação
o sensacional desinteresse
açambarcado ao armazém das coisas sérias
à mercê dos eufemísticos deuses
que não sabem do trono.
[Crónicas do vírus, DCCLXVIII]
Legados da peste (84):
enlutados,
sem parecer que sim,
na gloriosa marcha
até ao próximo precipício.
[Crónicas do vírus, DCCLXVII]
Legados da peste (83):
náufragos,
habitantes
de uma boia salva-vidas.
[Crónicas do vírus, DCCLXVI]
Legados da peste (82):
contra a deslembrança
a boca faminta do monstro
a sair do esconderijo.
Não se esconde
a ira da Terra.
As veias incensadas
arrematam a terra por fora
e de sua lava amanhece um ontem
transfigurado.
Um apanhado de estetas
extasia-se
provavelmente insultando
(sem darem conta)
os que perderam tudo
para a boca faminta da lava
rejeitada pelo vulcão.
[Crónicas do vírus, DCCLXV]
Legados da peste (81):
A maré que se abate
outra vez
com a fiança da altivez.
Não constam do património
os restos de dias sem bitola.
Os murmúrios
rugem nas arcadas da memória.
Não se desembaraçam
na sua infinita complexidade
como se neles houvesse labirintos puídos.
Às vezes
o caudal desvia-se das intenções
e são os pés gastos que narram a história.
Sem o avesso da pele
não contamos;
nem como cobaias de nós mesmos.
Oxalá houvesse fronteiras.
Só pelo prazer de as atravessar.
[Crónicas do vírus, DCCLXIV]
Legados da peste (80):
navegamos entre
o investimento na euforia
e a desconfiança dos fantasmas.
O lugar vago
não é o paradeiro sem intenção
uma espécie de orfandade estiolada
um pesar que se pesa
na lassidão de um silêncio.
O lugar que se vaga
é uma metáfora que se desenha
na urdidura dos dedos artesãos
afidalgados por uma vontade estrénua.
Os lugares que vagam
estão à espera
do lugar de um corpo.
Nunca chegam a vagar
enquanto não for vaga a vontade
dos corpos que se não rendem
ao vagar.
[Crónicas do vírus, DCCLXIII]
Legados da peste (79):
a perpetuação
da arqueologia
da vulnerabilidade.
Dia
de todos os santos
incluindo eu.
(Ou:
dia de miopia agravada
e de julgamento em causa própria.)
[Crónicas do vírus, DCCLXII]
Legados da peste (78):
um forte sem fronteiras,
a usura do desmedo
(ou a província da impaciência).
Amoedo a diplomacia cortante
as armas guardadas no quartel
e a demais guarnição
(como não?)
aquartelada.
(Se fosse mandante
seria das poucas ordenanças
por mim lavrada:
desarmar o exército.)
Se a teimosia vingasse
as rodas dentadas mudavam de lugar
e o mundo,
este mundo tão perfeito
e ao mesmo repleto de deformidades,
não seria o mesmo.
E eu
ainda estou a tentar perceber
se um diferente mundo
seria menção recomendável.
[Crónicas do vírus, DCCLXI]
Legados da peste (77):
o regateio
das vozes que resgatam
o lugar dissipado.