17.11.21

#2206

[Crónicas do vírus, DCCLXXVIII]

 

Legados da peste (94):

a miragem 

tão demandada

é o antídoto cabal.

#2205

[Crónicas do vírus, DCCLXXVII]

 

Legados da peste (93):

nunca deixamos 

de estar a tempo

de alinhavar a marcha-atrás.

16.11.21

FW: backwards

O som das árvores

ecoa na planície

o ostensivo ranger de dentes

que pede meças ao silêncio. 

Os oráculos, hiperativos,

dedicam-se à prestidigitação do passado

movendo-lhe as costuras

até serem a sombra pálida

do espelho que protesta contra o pretérito. 

Os dedos imprevidentes atiram-se ao futuro. 

Pecam por defeito:

se as medidas estivessem calibradas

o futuro seria apenas 

uma remota lembrança.

Guitarra

Deixo a guitarra

a falar por mim

e visto-me de mundo

à espera do luar tardio.

#2204

[Crónicas do vírus, DCCLXXVI]

 

Legados da peste (92):

a precipitação,

talvez,

do legado

fará dizer que foi apressado

o legado.

15.11.21

O pano puído

O pano puído

posterga o peditório da fama.

Pendido sobre o pedestal gasto

povoa os fundilhos que se perenizam.

Puído em paráfrases ímpares

o pano pavoneava-se sem porção.

Os corpos pirotécnicos

perdiam-se no pastiche fúnebre

sem perfilharem o seu passado.

O pano puído era a metáfora

do país possível.

#2203

[Crónicas do vírus, DCCLXXV]

 

Legados da peste (91):

euforia

em disfarce

do próximo estertor.

14.11.21

#2202

[Crónicas do vírus, DCCLXXIV]

 

Legados da peste (90):

guerrilheiros desafeiçoados

de armas destrunfadas

e, portanto, não terçadas.

13.11.21

#2201

[Crónicas do vírus, DCCLXXIII]

 

Legados da peste (89):

não legado,

apenas interstício,

o morticínio da peste disfarçado 

de hibernação.

12.11.21

Enseada

A boca 

traz o palco 

em sobressalto.

Calada

morde os lábios

à espera de destronar

o silêncio.

Dela se teme

um abalo telúrico

a ossatura estilhaçada

no rumor da palavra canina.

O sal não está à venda.

Apalavra-se o entardecer

no fio delgado

da memória.

Dessas palavras nunca vãs

há de o silêncio

perder trunfo.

#2200

[Crónicas do vírus, DCCLXXII]

 

Legados da peste (88):

as bandeiras 

crismadas pela ferrugem

entronizam 

os mastros decadentemente machos.

 

11.11.21

#2199

[Crónicas do vírus, DCCLXXI]

 

Legados da peste (87):

o disfarce

institucionalizado

(nos açaimes que perduram).

10.11.21

Ilustração

Num abraço de mar

as andorinhas

desenham palavras cintilantes

amesendadas com lírios gastos.

Ao longe

um navio afasta-se;

leva da cidade

a sua pose arrumada

(bem vai precisar dela

que uma tempestade se anuncia

para o alto-mar).

Por cá 

ficam os de sempre

na indiferença de sempre.

#2198

[Crónicas do vírus, DCCLXX]

 

Legados da peste (86):

deserdados do passado

à espera 

da indulgência do futuro.

9.11.21

Litania

Subo ao modo hibernação

não vá ser devorado

pelas forças implacáveis

que afeiam o mundo.

Se houver apeadeiro recomendável

provo o mosto a que for convidado.

Em caso que seja diferente

terço o não

para não ser arrematado fora do prazo.

E se às mentiras forem ditas mentiras

sobre destemporadas a eito

nas masmorras da impureza

que sobre a frugalidade da palavra singular

antes que seja dado vivo

a mastins disfarçados de arcanjos.

#2197

[Crónicas do vírus, DCCLXIX]

 

Legados da peste (85):

enciumados

por não sermos o alvo 

jogamos à roleta russa.

8.11.21

Escadaria

Dantes

era enseada

as águas bucólicas

vertendo irrisórias lamentações

em limítrofes umbrais 

paradeiro de solitários. 

 

Agora

era emboscada

à mercê de uma maré

investida no embaraço da ira

em vez dos rostos seráficos

das assim vistas tágides. 

 

Amanhã

será evaporação 

o sensacional desinteresse

açambarcado ao armazém das coisas sérias

à mercê dos eufemísticos deuses

que não sabem do trono.

#2196

[Crónicas do vírus, DCCLXVIII]

 

Legados da peste (84):

enlutados,

sem parecer que sim,

na gloriosa marcha

até ao próximo precipício.

7.11.21

#2195

[Crónicas do vírus, DCCLXVII]

 

Legados da peste (83):

náufragos,

habitantes 

de uma boia salva-vidas.

6.11.21

#2194

[Crónicas do vírus, DCCLXVI]

 

Legados da peste (82):

contra a deslembrança

a boca faminta do monstro

a sair do esconderijo.

5.11.21

O vulcão não precisa de ser teatro

Não se esconde

a ira da Terra.

As veias incensadas

arrematam a terra por fora

e de sua lava amanhece um ontem

transfigurado.

Um apanhado de estetas

extasia-se

provavelmente insultando 

(sem darem conta)

os que perderam tudo

para a boca faminta da lava

rejeitada pelo vulcão.

#2193

[Crónicas do vírus, DCCLXV]

 

Legados da peste (81):

A maré que se abate

outra vez

com a fiança da altivez.

4.11.21

FM estéreo

Não constam do património

os restos de dias sem bitola. 

Os murmúrios 

rugem nas arcadas da memória. 

Não se desembaraçam

na sua infinita complexidade

como se neles houvesse labirintos puídos.

Às vezes

o caudal desvia-se das intenções

e são os pés gastos que narram a história. 

Sem o avesso da pele

não contamos; 

nem como cobaias de nós mesmos. 

Oxalá houvesse fronteiras. 

Só pelo prazer de as atravessar.

#2192

[Crónicas do vírus, DCCLXIV]

 

Legados da peste (80):

navegamos entre

o investimento na euforia

e a desconfiança dos fantasmas.

3.11.21

Vago

O lugar vago

não é o paradeiro sem intenção

uma espécie de orfandade estiolada

um pesar que se pesa

na lassidão de um silêncio. 

O lugar que se vaga

é uma metáfora que se desenha

na urdidura dos dedos artesãos

afidalgados por uma vontade estrénua. 

Os lugares que vagam

estão à espera 

do lugar de um corpo. 

Nunca chegam a vagar

enquanto não for vaga a vontade

dos corpos que se não rendem

ao vagar. 

#2191

[Crónicas do vírus, DCCLXIII]

 

Legados da peste (79):

a perpetuação

da arqueologia

da vulnerabilidade.

2.11.21

Todos os santos e eu também

Dia

de todos os santos

incluindo eu.

 

(Ou:

dia de miopia agravada

e de julgamento em causa própria.)

#2190

[Crónicas do vírus, DCCLXII]

 

Legados da peste (78):

um forte sem fronteiras,

a usura do desmedo

(ou a província da impaciência).

1.11.21

Sumo de limão disfarçado

Amoedo a diplomacia cortante

as armas guardadas no quartel 

e a demais guarnição

(como não?)

aquartelada.

 

    (Se fosse mandante

    seria das poucas ordenanças 

    por mim lavrada:

    desarmar o exército.)

 

Se a teimosia vingasse

as rodas dentadas mudavam de lugar

e o mundo,

este mundo tão perfeito

e ao mesmo repleto de deformidades,

não seria o mesmo.

 

E eu

ainda estou a tentar perceber

se um diferente mundo

seria menção recomendável.

#2189

[Crónicas do vírus, DCCLXI]

 

Legados da peste (77):

o regateio

das vozes que resgatam

o lugar dissipado.