5.1.22

#2259

[Crónicas do vírus, DCCCXXXI]

 

Legados da peste (147):

a peste

banaliza-se

e deixa de ser

peste.

(Manifesto da esperança)

Economia das palavras

Podia dizê-lo

um trilião de vezes

até as palavras 

se esgotarem no seu sentido

e, presas à vacuidade,

serem letradas menores

do idioma exaurido.

 

Podia dizê-lo

modestamente

na austeridade de palavras

que é sua predileta homenagem

antes que,

açambarcadas,

sejam reféns da vulgaridade.

 

E não,

não digam que

as palavras são imunes

ao gasto. 

4.1.22

#2258

[Crónicas do vírus, DCCCXXX]

 

Legados da peste (146):

a memória

é um paradoxo

que convoca o futuro.

3.1.22

Rosa dos ventos

A roda dos ventos

vestira-se com o mais fino traje

aquele que se servia

de nobre fazenda 

– o traje cerimonioso

que vê a luz do dia 

um punhado de vezes. 

Apessoada e vaidosa

a rosa dos ventos esperava pelo vento 

que se jurava iracundo. 

As previsões dos peritos saíram furadas. 

E ali ficou a rosa dos ventos

prostrada

refém da melancolia

ao saber que o vento 

primara pela inércia. 

#2257

[Crónicas do vírus, DCCCXXIX]

 

Legados da peste (145):

os braços atirados

em riste

contra as promessas

de passado.

Antes que o futuro seja

A metáfora cantada

na consequência do dia

atualiza a pele antecipada.

Das rugas não há inventário:

o espelho está partido

e a linhagem do tempo

é o esquecimento.

2.1.22

#2256

[Crónicas do vírus, DCCCXXVIII]

 

Legados da peste (144):

a lava torrencial

enfim cristalizada

ou o disfarce de um disfarce

em forma de logro (disfarçado)?

1.1.22

#2255

[Crónicas do vírus, DCCCXXVII]

 

Legados da peste (143):

pandemia ou endemia:

jura de alívio

ou apenas o jogo da semântica?

31.12.21

Confirmação

Podia ser 

a fuligem que açaima o mar

a insaciável sede de maresia

ou apenas

o embaraço de ser.

 

Podia ser

um beijo sem cor

a temperar o rosto melancólico

e as temporadas não seriam vãs

no seu improvável presságio.

 

Fossem as palavras castelos sem sombra

e a fala um idioma sem segredos

todos os versos combinariam com a manhã

por fim 

os mastins seriam calados.

 

Sem que fossem promessas à espera

o caudal servia de paramento para as juras

e de véspera em véspera

Aas mãos incansáveis seriam mestras do dia.

 

Até que

enfim

o céu consumido pelo ocaso

já não fosse um segredo sem cofre

e as rimas

fossem o lugar possível da fala.

#2254

[Crónicas do vírus, DCCCXXVI]

 

Legados da peste (142):

somos de porcelana,

reativos.

#2253

[Crónicas do vírus, DCCCXXV]

 

Legados da peste (141):

uma tela

tão impressionista

que é tatuagem imorredoira.

30.12.21

Sobre a pequenez dos Homens

A lava rejeita a pele

como tatuagem.

Deixa para a erupção

o magma tangencial

que sobe aos olhos lívidos

antes que a tarde suba 

num frémito peregrino.

As casas são feitas de papel 

– diz-se por aí

como se o pranto não tivesse

lágrimas.

Somos irrisórios

e disso

é que podemos ter a certeza.

#2252

[Crónicas do vírus, DCCCXXIV]

 

Legados da peste (140):

os muitos véus 

sobrepostos

num labirinto sem mapa.

29.12.21

#2251

[Crónicas do vírus, DCCCXXIII]

 

Legados da peste (139):

a porta dos fundos

outra vez

(quando 

já tinham jurado o Éden

precipitadamente).

28.12.21

Se as pessoas conhecessem os gatos

Se as pessoas conhecessem os gatos

não diriam

“caga nisso”,

como quem diz

não dês importância ao sucedido

ele faz-se esquecer por si mesmo. 

Se as pessoas conhecessem os gatos

saberiam

que os gatos escondem o que cagam

para não deixarem vestígios

à sua passagem.

#2250

[Crónicas do vírus, DCCCXXII]

 

Legados da peste (138):

timoneiros

que não passam de regentes

e regentes

que não têm cepa

de timoneiros.

27.12.21

Eternidade

Não se é novo

na véspera da eternidade.

 

Uma centelha foge do céu.

Desenha uma estrada de sonhos

e nós, 

que novos somos,

anexamos o orvalho pendido das uvas

por sabermos

que é o elixir alojado na pele sem regras.

 

Nos socalcos a poente

o refrão entoa desde o vale profundo.

Não somos nós a profanar

o austero relógio que encomenda as almas;

deixamo-nos

por conta da vontade

arqueada na frontaria desimpedida

onde se assina o livro de honra.

 

Não se é novo 

na véspera da eternidade;

E o que é a eternidade

se não uma servidão?

#2249

[Crónicas do vírus, DCCCXXI]

 

Legados da peste (137):

tivemos direito

à (todavia dispensável) quota

de homens providenciais.

26.12.21

#2248

[Crónicas do vírus, DCCCXX]

 

Legados da peste (136):

porque será 

que disfarce

quase rima 

com farsa?

25.12.21

#2247

[Crónicas do vírus, DCCCXIX]

 

Legados da peste (135):

quando nos for devolvido

o que somos 

– ou: se nos for devolvido 

o que fomos?

24.12.21

#2246

[Crónicas do vírus, DCCCXVIII]

 

Legados da peste (134):

nunca 

tão invadidos

foram os narizes

(precondição do Natal).

23.12.21

Vitamina

Seria enxovalho da alma

Aa cobrança à revelia

enquanto os pregões dos eruditos

subiam no estuário das desideias.

O piano gasto era testemunha.

Sem as nuvens como página

as mãos trémulas arriscavam as palavras

à espera de doutrina válida

à espera

da caução sem remorso

como se fosse a antítese da angústia.

Não eram as chuvas de inverno

que desarranjavam o sangue;

a chama entediada jogava-se nos quarteis

os lugares perdidos que não sabiam de chão

nem cortejavam o mapa das almas.

Como não houve enxovalho

as almas não desistiram.

Hoje

falam ao ouvido dos deuses

e ensinam-lhes

em bom idioma

o povoamento das almas.

#2245

[Crónicas do vírus, DCCCXVII]

 

Legados da peste (133):

há máscaras açaimes;

e máscaras 

bandeiras da estética.

22.12.21

Ponte cedular

A ponte

maior 

do que o rio.

 

O estuário

acomoda-se.

É o fotógrafo

da paisagem

adereçada com a ponte.

 

A ponte

subleva-se

contra as fronteiras.

 

É poliglota das almas.

Casamenteira

(por que não admiti-lo?).

 

À ponte

lembra-se 

a serventia

quando reparações

a atrasam.

#2244

[Crónicas do vírus, DCCCXVI]

 

Legados da peste (132):

se em vez de atalhos

nos dessem

sol sem giestas

e poemas no adro.

21.12.21

Não contem às criancinhas sob pena de serem acusados de malvadez

No Natal

há circo

 

Há circo

no Natal.

#2243

[Crónicas do vírus, DCCCXV]

 

Legados da peste (131):

a cada curva da peste

um pontapé nos olhos,

cortesia dos regentes. 

#2242

[Crónicas do vírus, DCCCXIV]

 

Legados da peste (130):

de adiamento em concessão

transportados 

pelo pérfido buço da peste.

20.12.21

Novecentos e tal

A boca sem tamanho

maior do que a boca de um cão faminto

estipula a chuva tardia

no arranjo delicodoce das árvores matinais. 

Serve de estuário aos impropérios

diletante juramento das presas de infâmias

ou apenas um enclave

onde se situam as manhãs sem paradeiro

sem toponímia que as salve

sem fruição. 

O sangue sincopado mente aos costumes. 

A boca fanfarrona desdiz-se

e ninguém toma conta da mitomania. 

Pudera. 

Os costumes só são bons

se forem useiros no tributo à verdade

por mais que os seus apóstolos

mintam

com os dentes puídos que disfarçam

no impossível esconderijo da boca disforme. 

#2241

[Crónicas do vírus, DCCCXIII]

 

Legados da peste (129):

um vai-e-vem

interminável

a perguntar pela resistência.