[Crónicas do vírus, DCCCLI]
Legados da peste (167):
Às vezes
parece apenas
a interrupção de um pesadelo.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCCCLI]
Legados da peste (167):
Às vezes
parece apenas
a interrupção de um pesadelo.
As sílabas contam as bocas.
Esperam pela fala gorda
no desprotesto que se cala
na vigésima-terceira hora do dia.
As bocas cantam as sílabas
e a fala em catarse foge da mudez
no tirocínio do tempo.
As bocas:
escondidas na pose circense
arrumam-se em gestos pueris
e, todavia,
diplomáticos.
A muda fala que se muda
e se esforça em estrofes fadadas
mutila o silêncio,
impraticável.
[Crónicas do vírus, DCCCL]
Legados da peste (166):
Ganhamos sentinelas
numa atalaia
de que somos perdedores.
[Crónicas do vírus, DCCCXLIX]
Legados da peste (165):
Tal como ases autorreverenciais
refugiados em torres de marfim,
postiços apenas.
Deste estilo que se esconde
a impossibilidade do vento
açambarca as palavras vãs.
Diz-se:
o pensamento é masculino
(porque a gramática assim ordena)
e um pé-de-vento corre o terreiro.
O estilo que pressagia o porvir
não compensa:
esse é um tempo
que está por vir
e ninguém
confirma a sua chegada.
[Crónicas do vírus, DCCCXLVIII]
Legados da peste (164):
Os dias ainda baços
que servem para assear
a metamorfose duradoura.
[Crónicas do vírus, DCCCXLVII]
Legados da peste (163):
Desengorda o ego obeso
nos estilhaços
da sua disfarçada fragilidade.
A boca troveja
a espuma alcançada
no mar lívido.
Devolve
em dobro
a vertigem
amanhecida
numa aurora boreal.
No poema majestático
ficam desarrumados
os lençóis:
nesta arena
só têm admissão reservada
as armas que os corpos manejam
na gramática do desejo.
[Crónicas do vírus, DCCCXLVI]
Legados da peste (162):
Pagamos
em medo, obediência e conspirações
o legado da peste.
Jogados os dados
os dedos são a sua trama.
Dantes encolerizado
o magma eflúvio transita as veias
e adormece à boca de cena.
Há um ardor que sobra da combustão
as paredes interiores abraseadas
que quase irromperam em desmazelo.
Os dados cingiram a temperança
e os dedos,
enfim aplacados,
sorriem por dentro dos ossos
a favor do sortilégio.
[Crónicas do vírus, DCCCXLV]
Legados da peste (161):
O tempo
que se arrasta
fermenta o mosto
da fadiga.
A muda do corpo
esta deságua que lava o sangue
lava muda que desagua nas mãos
encorpando as paredes que amparam o dia.
[Crónicas do vírus, DCCCXLIV]
Legados da peste (160):
Uma guerra de teimosos
tende a tornar-se
em beligerância imorredoira.
Uma fração do medo
como
o número ímpar que se adia
e depois
arruma os braços
contra o pedestal do fingimento.
Mas o medo não se divide
e no luar singular
conspiramos por junto
sem remorso
sem capitular
a menos que os anátemas sejam derrotados.
Não é o medo
fragilidade que se entoe;
os interstícios das palavras
desembaraçam o medo
que a meio se reduz
a museologia para memória futura.
Todas as fotografias
resumos inacabados, estéreis,
a safra adiada dos tempos com mofo.
Todos os pesares
diademas ancilares, inúteis,
a lua cheia escondida num castelo de nuvens.
Todas as euforias
juras inverosímeis, farsantes,
modo motriz das vias vindouras.
Todos os olhares
colonizadores impacientes, ávidos,
tutores dos mapas à procura de revelação.
Todos os sabores,
bocas e corpos combustíveis, transidos,
no paradeiro que não se invalida.
[Crónicas do vírus, DCCCXLIII]
Legados da peste (159):
As mangas arregaçadas
para obras
sem prazo de validade.
[Crónicas do vírus, DCCCXLII]
Legados da peste (158):
A pele
ainda não está pronta
para o novo mapa
que é a sua casa.
O Inverno marca a herança
dos sábios.
A penumbra constante
é o mosto que ascende desde a manhã
e cobre o dia inteiro
como se à sua totalidade fosse reservado
uma plácida imagem.
No Inverno
as cores levitam
desmaiadas.
Arranjam-se as veias
que precisam de seu sazonal repouso
antes que a embriaguez de cores
e a pulsão dos corpos habitados pela Primavera
ocupem o lugar destemido.
No Inverno
busca-se hibernação
a alternativa para custear a existência
no inconfessado deleite
de a averbar no convés da alteridade.
[Crónicas do vírus, DCCCXL]
Legados da peste (156):
Corremos
pelo corredor afora
e não sabemos
do precipício que fica depois.
Um hino que espera
por uma mole humana
pois os hinos não são autoridade
se não forem navegantes
de lealdades.
Um hino
tão emotivamente entoado
mesmo que as estrofes sejam de cor
e delas não saibam ser hermeneutas
quem das suas gargantas o melhor oferece.
Um hino é um jogo de sombras.
Exige vultos
a preceito
e desafinadas vozes
que açambarcam um coração apeado.
Maior é a desonra
de corresponder
o lavar a cara à gato
a pouco asseio
se à demais fauna
(sem excluir a humana espécie)
os gatos
dão lições de asseio.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXIX]
Legados da peste (155):
um sonho
pela rama
num idioma
que se chama farsa.
É nesta miríade de noites
que amanhecem os sonhos.
Não são promessas
ou
um presságio tangível.
Talvez
apenas
uma morada diferente
como se a um palco imaterial
o corpo aportasse.
À matéria-prima daninha
não se acrescenta o verbo diurno.
Os palcos assim terçados
continuam vazios.
Os sonhos
esperam ainda
pelo seu paradeiro.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXVIII]
Legados da peste (154):
do estoicismo gratuito:
cair de pé
e nunca mais fermentar.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXVII]
Legados da peste (153):
de que lado da cortina
fomos deixados
a adiar?
Jogo o jogo dos seixos que sobram
da maré.
O tempo, hipnotizado,
não é um embaraço.
Se soubesse desenhar
tirava partido da areia molhada
deixada pela arqueologia de uma maré cheia
para emoldurar as baias do mundo.
Não fosse o cadáver de um caranguejo
que não pedia epitáfio
ou a vozearia das crianças outras
que jogavam às escondidas
com a timidez absoluta.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXVI]
Legados da peste (152):
os estilhaços
preenchem a paisagem
como campos minados.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXV]
Legados da peste (151):
nem sempre
a vindima de cachos apodrecidos
é colheita tardia.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXIV]
Legados da peste (150):
a tradução da fala,
ou o véu que se abate
sobre a boca.