19.3.22

#2335

[Crónicas do vírus, CMXII]

 

Legados da peste (223):

A peste ainda não partiu

e a selvajaria vem recordar

que somos o nosso próprio algoz.

18.3.22

Concurso de oráculos e a meia-desfeita do futuro que os desmente

O oráculo dos feiticeiros

atira o dia solitário

para o templo sem morada

e os escombros do futuro

juram que não juram nada

depois de esconjurados em devido tempo.

 

Se o fingimento 

é arrematado à indulgência

não cuidem os prometidos escansões

de dirimir os medos

com poções enfeitadas pelos magos;

um destes dias

será o tira-teimas

e não é de esperar

que os teimosos saldem o pleito

com a coroa atribuída aos laureados.

 

Quanto ao demais

ficava deleitado na plateia

a assistir 

ao cortejo dos adivinhadores do reino

vendo-os assoberbados

a tirar as bainhas do futuro

a partir de seus puídos oráculos.

#2334

[Crónicas do vírus, CMXI]

 

Legados da peste (222):

Liberdade sitiada

por os rostos 

ainda não desalfandegados 

de seus açaimes.

17.3.22

Vocabulário

O sangue

à porta subindo

e toda a lama

portadora de almas

ou as almas

abraseadas pelo medo

extintas pelo sangue

combustível.

Um pedaço do Saara em nós

Hoje

puseram o dia

a preto e branco.

#2333

[Crónicas do vírus, CMX]

 

Legados da peste (221):

Quem fica a cuidar

das cicatrizes 

da desliberdade?

16.3.22

Ópera dos (que estão) sentidos

Não é a contabilidade da redenção

nem um patriotismo celeste

ou a arqueologia arcana

que determina 

a raiz quadrada do pensamento. 

 

Se aos alvores 

forem as mãos tentaculares

na sua sede pela sede do conhecimento

não se apostrofem as intenções assim delidas

nem 

aos procuradores da angústia 

se enderecem culpas;

no refúgio demandado

o travejamento das almas

encontra região demarcada

e, seja como for,

das intenções não confessáveis

não se dá conta de paradeiro conhecido.

 

Aos segredos

fica reservado

o lugar do segredo 

sem sepultura.

#2332

[Crónicas do vírus, CMIX]

 

Legados da peste (220):

O rosto puído da desumanidade

dita o olvido da guerra 

ainda não vencida.

#2331

[Crónicas do vírus, CMVIII]

 

Legados da peste (219):

Derruído o crepúsculo

ficou de atalaia

o mosto da manhã reavivada.

15.3.22

Perdido a meio da tradução

Como se explica

que feriado em inglês

seja dia santo

e em português

apenas feriado?

Bolçar, depois do noticiário

O ramo prístino

itinerante

em vez 

da palavra-arremesso

e o peito nu

sem contrato

apenas 

guerreiro das guerras proibidas

ou o verso condomínio

quimérico

em vez

de vendas baças

e da falésia

sem vinculação

apenas

um eu formulado

na pauta 

onde vagueiam

miragens.

#2330

[Crónicas do vírus, CMVII]

 

Legados da peste (218):

Resgatado o leme

só falta saber 

do Norte.

14.3.22

Tempos desinteressantes

Cortam-se as sílabas no invólucro do medo. 

A fala intumesceu

e as palavras assoaram o ranho 

dos dias pesarosos e lamentáveis. 

As armas falam pelos corpos. 

As águas poluídas são o mosto dos dias farsantes. 

O desalento levanta-se na roda-viva do tempo

à espera dos provérbios roubados

e da insídia que coloniza 

a geografia dos Homens. 

As cores foram anestesiadas

e até o tempo não se terça

a propósito dos arco-íris. 

Temos medo do amanhã. 

Temos medo 

do que nunca deixamos de ser.

#2329

[Crónicas do vírus, CMVI]

 

Legados da peste (217):

O idioma da guerra

é o esperanto que nos cobre 

de infâmia.

13.3.22

Agilidade antropológica

E quando 

só ficarem espadas

sem ninguém

para as empunhar?

#2328

[Crónicas do vírus, CMV]

 

Legados da peste (216):

Estivemos 

na boca do inferno

e agora estamos

à boca do inferno.

12.3.22

#2327

[Crónicas do vírus, CMIV]

 

Legados da peste (215):

Tomar partido

pela ética assimilada

no reatar do sangue avivado. 

11.3.22

O des-lamento do pecado (ou: só se lamentam os des-pecados)

Um vulto esbraceja

sentado

na embocadura da voz

e diz, em matinal murmúrio,

que o pecado está de atalaia

só à espera da nossa distração. 

E nós

obedientes

julgamos a matemática possível

para ao velho vulto

a vontade fazer. 

E o vulto

sossegadamente 

escolhe outra freguesia

que os fogos por atear 

passam da conta humanamente possível. 

E depois 

há quem não entenda

que as igrejas 

andam à míngua de freguesia. 

#2326

[Crónicas do vírus, CMIII]

 

Legados da peste (214):

Cai a cortina da peste

e a palco

sobe a nudez da guerra. 

10.3.22

Derruição

Era uma água inaugurada

as patas desdentadas da noite

em talhadas de fúria servidas.

A boca arrancava o suor do chão

numa métrica desmatada

no provérbio dito em idioma alheio.

E as pessoas diziam

entoemos o pão que o amanhã dará

antes que os vitrais de estilhacem 

– antes que as modas sejam olvido

e dos desastres lacrados no atlas

seja servida a lenha em lenta combustão.

O quarto sem luz

emancipa-se do medo diuturno

e os rostos emprestam-se ao dia seráfico

antes que os versos terminem gongóricos 

– antes que as partículas acelerem

e o céu expluda para lá da fronteira

numa chuva de flores crepusculares.

E dessa água inaugurada

bebem os cavalos a sede das estepes

pois das neves ausentes se entendiam

em cofragem que desfalece

na fragilidade que povoa os Homens.

Por fora

os faróis não deixam ninguém sozinho.

Na cumeada

acendidas pela noite sem claridade

minúsculas vírgulas vermelhas bruxuleiam

sem saberem se o vento as socorre

ou se deixa ao convés ermo e deserto

a embaixada dos órfãos da loucura.

As apostas correm as páginas da geografia

reféns de apóstatas de lucidez

que irrompem numa correria irreparável

contra as barragens que nos dividem do medo.

Até que a falésia se despenha atrás de nós

sem deixar vestígios

e a pele curtida na angústia

abandona o seu tirocínio inválido.

#2325

[Crónicas do vírus, CMII]

 

Legados da peste (213):

As antenas

sintonizadas

no desexemplo 

que não deixamos de ser.

9.3.22

#2324

[Crónicas do vírus, CMI]

 

Legados da peste (212):

A guerra,

ou o Homem

metamorfoseado

em peste.

#2323

[Crónicas do vírus, CM]

 

Legados da peste (211):

A guerra,

a continuação da peste

com a marca do Homem.

8.3.22

Dos homens imprestáveis

O que se penhora

não tem fundo

e do fundo do vulcão

os pertences gastos fogem do periscópio

onde levita o sangue sem fala.

Temperamento colérico

nas brandas que espevitam o céu baço

cobra o preço último

enquanto a multidão coloniza as ruas

em silêncio.

As ruas servem de corrimão

aos que sem elas

seriam desamparados.

Em pose observadora,

como se fosse antropólogo,

junto as estrofes que desentorpecem a espécie

junto-as num compêndio de significados

enquanto retiro aos demónios

a albumina que os protege;

antes desprotegidos os demónios

do que por eles acossados

os inocentes.

E há inocentes?

Há verbos que se conjugam

na tumular profecia em abono dos inocentes,

ou tudo não passa da soberba

de quem dá aval a conceitos por determinar?

Dos púlpitos sem pertença

o vazio esvoaça

contundente

emasculadamente impuro.

Nos preparos

o tóxico raciocinar adere à retórica

e os lugares soam a prisões

melhor:

a navios onde viajam desterrados

que não têm cais que os queira

e por isso

talvez estejam destinados ao naufrágio.

Nunca se disse

que os eugenistas eram higienizadores.

Os palcos errantes 

somam-se à cacofonia dos eruditos.

Oxalá fossem militantes do silêncio

que em poemas seria substituto perfeito

da prosápia sem arrefecimento.

Por enquanto

o sofrimento só pertence ao dicionário.

Não se vê que seja um senão

se até os deuses advertem

com mnemónica diligentemente doutrinada

que o sofrimento não se divorcia do Homem.

A menos que hoje

por ser dia em que a mulher é celebrada

(e porque se achou apenas um dia

no imenso calendário de um ano

para celebrar a mulher

é matéria que ultrapassa a lógica)

não se diga que os homens merecem palco

pois eles 

são os procuradores máximos da beligerância

fautores máximos da impiedade 

com lugar direto ao banco dos réus

onde juízas aprumadas no escorreito manejo das leis

esperam pela vingança sem opróbrio.

Pois delas é a mitologia

e dos homens

a fé cega na marcial expropriação do tempo.

As flores que daqui se ouvem

Queria voltar a ser criança

só para dizer

que queria ser forasteiro 

quando fosse adulto.

O sonho maior

era sair sem mapa 

que me pudesse ensinar 

um destino.

#2322

[Crónicas do vírus, DCCCXCIX]

 

Legados da peste (210):

Diríamos

redenção

se tivesse havido

pecado.

7.3.22

Nervo

Falo da metáfora

que se aviva 

na limalha do ocaso.

 

O crepúsculo macilento

é refúgio dos sortilégios,

e a fala 

debate-se com a vertigem

arrancada ao precipício da noite.

 

Falo por metáforas

que o medo de ser entendido

fala por cima.

#2321

[Crónicas do vírus, DCCCXCVIII]

 

Legados da peste (209):

O irrisório dano da peste

comparado com o dano 

que o Homem pratica 

em si mesmo.

6.3.22

Lacunar

É no avesso da alma

que sabemos

do sal do sangue.

4.3.22

Postal desilustrado

Deslembrado

o lastro em que assentamos

sobramos como desmemória

ofensores do futuro

párias em sangue próprio.

 

Às vezes pressinto:

a humanidade 

não é digna de si mesma

não sabe dar conta de si

e merecia extinção.