[Crónicas do vírus, CMXII]
Legados da peste (223):
A peste ainda não partiu
e a selvajaria vem recordar
que somos o nosso próprio algoz.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CMXII]
Legados da peste (223):
A peste ainda não partiu
e a selvajaria vem recordar
que somos o nosso próprio algoz.
O oráculo dos feiticeiros
atira o dia solitário
para o templo sem morada
e os escombros do futuro
juram que não juram nada
depois de esconjurados em devido tempo.
Se o fingimento
é arrematado à indulgência
não cuidem os prometidos escansões
de dirimir os medos
com poções enfeitadas pelos magos;
um destes dias
será o tira-teimas
e não é de esperar
que os teimosos saldem o pleito
com a coroa atribuída aos laureados.
Quanto ao demais
ficava deleitado na plateia
a assistir
ao cortejo dos adivinhadores do reino
vendo-os assoberbados
a tirar as bainhas do futuro
a partir de seus puídos oráculos.
[Crónicas do vírus, CMXI]
Legados da peste (222):
Liberdade sitiada
por os rostos
ainda não desalfandegados
de seus açaimes.
O sangue
à porta subindo
e toda a lama
portadora de almas
ou as almas
abraseadas pelo medo
extintas pelo sangue
combustível.
[Crónicas do vírus, CMX]
Legados da peste (221):
Quem fica a cuidar
das cicatrizes
da desliberdade?
Não é a contabilidade da redenção
nem um patriotismo celeste
ou a arqueologia arcana
que determina
a raiz quadrada do pensamento.
Se aos alvores
forem as mãos tentaculares
na sua sede pela sede do conhecimento
não se apostrofem as intenções assim delidas
nem
aos procuradores da angústia
se enderecem culpas;
no refúgio demandado
o travejamento das almas
encontra região demarcada
e, seja como for,
das intenções não confessáveis
não se dá conta de paradeiro conhecido.
Aos segredos
fica reservado
o lugar do segredo
sem sepultura.
[Crónicas do vírus, CMIX]
Legados da peste (220):
O rosto puído da desumanidade
dita o olvido da guerra
ainda não vencida.
[Crónicas do vírus, CMVIII]
Legados da peste (219):
Derruído o crepúsculo
ficou de atalaia
o mosto da manhã reavivada.
Como se explica
que feriado em inglês
seja dia santo
e em português
apenas feriado?
O ramo prístino
itinerante
em vez
da palavra-arremesso
e o peito nu
sem contrato
apenas
guerreiro das guerras proibidas
ou o verso condomínio
quimérico
em vez
de vendas baças
e da falésia
sem vinculação
apenas
um eu formulado
na pauta
onde vagueiam
miragens.
Cortam-se as sílabas no invólucro do medo.
A fala intumesceu
e as palavras assoaram o ranho
dos dias pesarosos e lamentáveis.
As armas falam pelos corpos.
As águas poluídas são o mosto dos dias farsantes.
O desalento levanta-se na roda-viva do tempo
à espera dos provérbios roubados
e da insídia que coloniza
a geografia dos Homens.
As cores foram anestesiadas
e até o tempo não se terça
a propósito dos arco-íris.
Temos medo do amanhã.
Temos medo
do que nunca deixamos de ser.
[Crónicas do vírus, CMVI]
Legados da peste (217):
O idioma da guerra
é o esperanto que nos cobre
de infâmia.
[Crónicas do vírus, CMV]
Legados da peste (216):
Estivemos
na boca do inferno
e agora estamos
à boca do inferno.
[Crónicas do vírus, CMIV]
Legados da peste (215):
Tomar partido
pela ética assimilada
no reatar do sangue avivado.
Um vulto esbraceja
sentado
na embocadura da voz
e diz, em matinal murmúrio,
que o pecado está de atalaia
só à espera da nossa distração.
E nós
obedientes
julgamos a matemática possível
para ao velho vulto
a vontade fazer.
E o vulto
sossegadamente
escolhe outra freguesia
que os fogos por atear
passam da conta humanamente possível.
E depois
há quem não entenda
que as igrejas
andam à míngua de freguesia.
[Crónicas do vírus, CMIII]
Legados da peste (214):
Cai a cortina da peste
e a palco
sobe a nudez da guerra.
Era uma água inaugurada
as patas desdentadas da noite
em talhadas de fúria servidas.
A boca arrancava o suor do chão
numa métrica desmatada
no provérbio dito em idioma alheio.
E as pessoas diziam
entoemos o pão que o amanhã dará
antes que os vitrais de estilhacem
– antes que as modas sejam olvido
e dos desastres lacrados no atlas
seja servida a lenha em lenta combustão.
O quarto sem luz
emancipa-se do medo diuturno
e os rostos emprestam-se ao dia seráfico
antes que os versos terminem gongóricos
– antes que as partículas acelerem
e o céu expluda para lá da fronteira
numa chuva de flores crepusculares.
E dessa água inaugurada
bebem os cavalos a sede das estepes
pois das neves ausentes se entendiam
em cofragem que desfalece
na fragilidade que povoa os Homens.
Por fora
os faróis não deixam ninguém sozinho.
Na cumeada
acendidas pela noite sem claridade
minúsculas vírgulas vermelhas bruxuleiam
sem saberem se o vento as socorre
ou se deixa ao convés ermo e deserto
a embaixada dos órfãos da loucura.
As apostas correm as páginas da geografia
reféns de apóstatas de lucidez
que irrompem numa correria irreparável
contra as barragens que nos dividem do medo.
Até que a falésia se despenha atrás de nós
sem deixar vestígios
e a pele curtida na angústia
abandona o seu tirocínio inválido.
[Crónicas do vírus, CMII]
Legados da peste (213):
As antenas
sintonizadas
no desexemplo
que não deixamos de ser.
O que se penhora
não tem fundo
e do fundo do vulcão
os pertences gastos fogem do periscópio
onde levita o sangue sem fala.
Temperamento colérico
nas brandas que espevitam o céu baço
cobra o preço último
enquanto a multidão coloniza as ruas
em silêncio.
As ruas servem de corrimão
aos que sem elas
seriam desamparados.
Em pose observadora,
como se fosse antropólogo,
junto as estrofes que desentorpecem a espécie
junto-as num compêndio de significados
enquanto retiro aos demónios
a albumina que os protege;
antes desprotegidos os demónios
do que por eles acossados
os inocentes.
E há inocentes?
Há verbos que se conjugam
na tumular profecia em abono dos inocentes,
ou tudo não passa da soberba
de quem dá aval a conceitos por determinar?
Dos púlpitos sem pertença
o vazio esvoaça
contundente
emasculadamente impuro.
Nos preparos
o tóxico raciocinar adere à retórica
e os lugares soam a prisões
melhor:
a navios onde viajam desterrados
que não têm cais que os queira
e por isso
talvez estejam destinados ao naufrágio.
Nunca se disse
que os eugenistas eram higienizadores.
Os palcos errantes
somam-se à cacofonia dos eruditos.
Oxalá fossem militantes do silêncio
que em poemas seria substituto perfeito
da prosápia sem arrefecimento.
Por enquanto
o sofrimento só pertence ao dicionário.
Não se vê que seja um senão
se até os deuses advertem
com mnemónica diligentemente doutrinada
que o sofrimento não se divorcia do Homem.
A menos que hoje
por ser dia em que a mulher é celebrada
(e porque se achou apenas um dia
no imenso calendário de um ano
para celebrar a mulher
é matéria que ultrapassa a lógica)
não se diga que os homens merecem palco
pois eles
são os procuradores máximos da beligerância
fautores máximos da impiedade
com lugar direto ao banco dos réus
onde juízas aprumadas no escorreito manejo das leis
esperam pela vingança sem opróbrio.
Pois delas é a mitologia
e dos homens
a fé cega na marcial expropriação do tempo.
Queria voltar a ser criança
só para dizer
que queria ser forasteiro
quando fosse adulto.
O sonho maior
era sair sem mapa
que me pudesse ensinar
um destino.
Falo da metáfora
que se aviva
na limalha do ocaso.
O crepúsculo macilento
é refúgio dos sortilégios,
e a fala
debate-se com a vertigem
arrancada ao precipício da noite.
Falo por metáforas
que o medo de ser entendido
fala por cima.
[Crónicas do vírus, DCCCXCVIII]
Legados da peste (209):
O irrisório dano da peste
comparado com o dano
que o Homem pratica
em si mesmo.
Deslembrado
o lastro em que assentamos
sobramos como desmemória
ofensores do futuro
párias em sangue próprio.
Às vezes pressinto:
a humanidade
não é digna de si mesma
não sabe dar conta de si
e merecia extinção.