Na falta do verso
o avesso da fala.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Descubro as cortinas do avesso
e dos pespontos do olhar
elevo o céu um degrau acima.
As miragens não sucumbem à respiração
nem a maresia se acastela nos braços ávidos.
Se a praia disser um segredo
que fique por conta dos sortilégios
das obras inacabadas que dão nome
à má engenharia.
A deserção dos lugares não os diminui.
Nem os lugares desertados são má companhia.
Se os esteios não rangessem de medo
a areia seria a cofragem dos bravos.
Os compêndios ensinam
que não se fazem lugares
sem um punhado de bravos
os que arroteiam o terreno baldio
dele fazendo urbe bucólica.
No tira-teimas de uma ponte sobranceira
os senadores apessoados não deixam acasos soltos:
é deles a orquestra
e eles,
em circunstanciada generosidade,
aceitam povoar a toponímia com seus nomes,
mas só para memória futura.
As cortinas do avesso
deitadas sobre as placas
que reinventam a toponímia,
esperam que deixem de preencher
ao paradeiro dos vivos.
Se a voz for meteorito
que leve no dorso
o ouro sem bandido.
Dizem
que somamos o conjunto dos verbos avessados
por mercê do estado iracundo
escondido nos contrafortes sem exibição.
Dizes
que sou asceta propositado
artesão despojado de artes
limitado à fala sem estribo.
É esta gramática ingénua
em páginas sem burel
que se levanta contra os compêndios
contra
os anacoretas devolvidos a torres de marfim,
manifesto válido em pétalas de granito
contra
os chás tomados em tenra idade
– o melhor critério para enviesar petizes.
Dizes
sem seres juíza em causa com guia de marcha
que não sabes como ser como sou
e um esteta de reconhecida linhagem
não o diria melhor.
Dizem
que o sangue furibundo que habita as veias
seria o pano de fundo para a tela
à espera
dos dedos providenciais dos voluntários.
Uma obra coletiva
apascentada nas ofertas diligentes
de muito briosos patrícios.
Em vez de medo
voluteia um velho disco
no som arranhado do seu muito uso.
Ninguém é feito
se não desta estreita margem.
De apeadeiro em apeadeiro
sem conservar os nomes na memória
azula-se o dia com o pressentimento do luar.
Os desencontros são a mestria dos contratempos
um desalinhamento estrutural
que nos coloca a destempo
reféns de lugares diferentes
notários de diferentes figuras de estilo.
Pois é estilístico,
e garbosamente recomendável,
alardear uma erudição que se não tem.
Assim como assim
a quase ninguém será dado saber da falácia
e em defesa do aparente erudito
há sempre a hipótese
de o confundir com um gongorismo.
Damos sede ao corpo
no fogo que amanhece
por dentro da boca ateada.
As mãos desenham um mapa
ouvem os poros suados
– os poros não extintos
no diadema da combustão.
Dos sonhos
dizemos serem feéricos
imperturbáveis
à espera de serem chão emoliente
e da seiva em levitação
ajuramentada
no compasso da lava irrefreável
a espreitar entre a penumbra.
Não mentimos ao desejo.
Mantemos os corpos emaranhados
na dialética sem tratado.
Cuidamos de ser
em nome próprio
deuses que tutelam todos os demais deuses
– pois é alquimia que se agiganta
no entrelaçar dos dedos
nos corpos que se trespassam
em verbos singulares.
No espaço entre nós
não cabem milímetros intrusos.
A manhã já foi promessa
e materializou-se
trono acima dos tronos
de onde reinamos
no idioma que por nós fala
– nas sílabas do sangue ebuliente.
Ouço o sangue
depois da lava do desespero
e dou criação ao belo,
sem adjetivos.
[Concerto de Nick Cave and the Bad Seeds, NOS Primavera Sound, 09.06.22]
Sem mãos a medir
que a medida
está pela hora da morte
e a morte recusa-se a entrar
em saldo.
O fundo do poço
não mostra o fundo
sem fundo de maneio
entre os meneios que se digitam
antes que o navio vá ao fundo.
A fala de que se fala
emudece e cuida da muda
de ser muda outrora fala.
Des-sejamos:
altivos
burocráticos
piratas
impassíveis
calendários ambulantes
pioneses (meros)
rudimentares
planeadores de eólicas
pleonasmos pueris
povoadores do mundo
terylene
beócios (mesmo sem o saber)
mãos estreitas
paracetamol
barriga opada
sede olímpica
promotores da humanidade
(que topete!)
tutores
troca-tintas
algoritmo inconsciente
fala-barato (e silêncio-caro)
triunfadores narcísicos
absolutamente néscios
irritantes
(sobretudo de otimista lavra)
rebuçados de mentol
arquivistas (empoeirados)
e
banqueiros do tempo.
Amostra representativa:
benévolos que disfarçam
o déspota que há em si
e déspotas
disfarçados de benévolos.
Casa forte
tatuada no dorso sem medo
amoedada na estirpe dos avoengos
tirada ao acaso
entre noviços entaramelados entre duas pontes.
Forte a casa
a fortaleza de um labirinto
só combustível na ágil vontade desembaraçada.
Casa
a forte
diadema arrematado
na boca do avesso
a autenticidade de um jacarandá contemplativo.
Forte casa
a fome de extinguir a fome
coreografia impassível
ou apenas
o leve menear do dia vindouro
no cais amuralhado pelo nevoeiro demorado.
Na fila para pagar a gasolina
olhou de lado para o espelho
que mostrava a sua silhueta
em vez dos gelados adriçados.
Um silêncio insólito
incómodo
trespassava o estabelecimento.
Ninguém queria falar.
Sentiu a ponte levadiça
para a humanidade sem remédio.
Ele há tanta gente a querer falar
impedida por tiranetes a destempo
e naquele lugar
todos renunciaram ao dever de falar.
Como o copo está sempre meio vazio
percebeu:
quem não tem
apurada coisa para pronunciar
que se remeta ao irremediável remendo
do silêncio.
Salta à corda
o vilão
traz disfarce apessoado
faz dele distinta pessoa
e as entorses à lei
escondidas numa funda cova
mesmo à espera de serem
sepultura.
Do dédalo excruciante
arrastou o corpo
ao pináculo da ausência.
Servia o estado comatoso das coisas
como se fosse acólito cirúrgico
da decadência instalada.
As nuvens limpavam o suor do rosto
e das gotas pendidas havia o orvalho;
os olhos desfocados rebatem as certezas
deixam os enigmáticos vedores
em coloquiais verbenas,
sem cinto de segurança.
Há tempos
o amanhecer parecia estouvado
a claridade embotada a surfar no calendário
e as pessoas,
como que absortas,
desaprendiam através das pautas rasgadas.
Desse dia não houve memória.
E nós,
artistas residuais
declaradamente intrépidos
(para não sermos reféns do sono)
metemos o arnês nas ideias
e acabamos presos na nossa pequenez.
Não há ruas proibidas
se as bocas desemudecem
no provérbio gasto
das tiranias atiradas ao acaso.
Não há ruas proibidas
nem os passos se aquartelam
na coreografia colonizada
por mastins arrimados na enseada.
Não há ruas proibidas
nem concessões à fala
pois da boca há palavras-limão
ácidas como substância
contra os tiranos candidatos.