20.6.22

#2435

O dicionário dançava

indiferente 

ao desdém dos párias.

19.6.22

Moeda forte

De que lado se situa

o movimento que se enlaça

no veludo que cobre a pele

de acobreada manhã?

 

Nas copas das árvores

amontoam-se as vírgulas perdidas

as vírgulas deixadas em orfandade

depois de ultrajadas.

Não se ciciam frases habilitadas

na penumbra que esconde o futuro.

Se for para remediar a boca cansada

antes a gramática dos silêncios

pela calada da redenção

por mercê do sono matriz.

 

O sorriso 

pode ser o idioma jurado

a metáfora desarrumada no portfolio,

claridade que irrompe

entre os mares atravessados de medos.

#2434

Entorta o sal

para caber o corpo

num comodato em desordem.

18.6.22

#2433

Na falta do verso

o avesso da fala.

17.6.22

#2432

O património do esquecimento

candeia sem mímica

um medicamento para o porvir. 

#2431

Ainda ninguém se lembrou

de registar 

na conservatória do registo comercial

o sindicato do desamor.

16.6.22

Sobre a toponímia e outros requisitos históricos

Descubro as cortinas do avesso

e dos pespontos do olhar

elevo o céu um degrau acima.

As miragens não sucumbem à respiração

nem a maresia se acastela nos braços ávidos.

Se a praia disser um segredo

que fique por conta dos sortilégios

das obras inacabadas que dão nome 

à má engenharia.

A deserção dos lugares não os diminui.

Nem os lugares desertados são má companhia.

Se os esteios não rangessem de medo

a areia seria a cofragem dos bravos.

Os compêndios ensinam

que não se fazem lugares 

sem um punhado de bravos

os que arroteiam o terreno baldio

dele fazendo urbe bucólica.

No tira-teimas de uma ponte sobranceira

os senadores apessoados não deixam acasos soltos:

é deles a orquestra

e eles, 

em circunstanciada generosidade,

aceitam povoar a toponímia com seus nomes,

mas só para memória futura.

As cortinas do avesso

deitadas sobre as placas 

que reinventam a toponímia, 

esperam que deixem de preencher 

ao paradeiro dos vivos.

#2430

Sussurra:

à má fila 

– pressupondo, 

nos interstícios dos silêncios,

as boas filas.

15.6.22

Palavra dada

Se a voz for meteorito

que leve no dorso 

o ouro sem bandido.

Dizem 

que somamos o conjunto dos verbos avessados

por mercê do estado iracundo

escondido nos contrafortes sem exibição.

Dizes

que sou asceta propositado

artesão despojado de artes

limitado à fala sem estribo.

É esta gramática ingénua

em páginas sem burel

que se levanta contra os compêndios

contra 

os anacoretas devolvidos a torres de marfim,

manifesto válido em pétalas de granito

contra 

os chás tomados em tenra idade 

– o melhor critério para enviesar petizes.

Dizes

sem seres juíza em causa com guia de marcha

que não sabes como ser como sou

e um esteta de reconhecida linhagem

não o diria melhor.

Dizem

que o sangue furibundo que habita as veias

seria o pano de fundo para a tela

à espera 

dos dedos providenciais dos voluntários.

Uma obra coletiva

apascentada nas ofertas diligentes

de muito briosos patrícios.

Em vez de medo

voluteia um velho disco 

no som arranhado do seu muito uso.

Ninguém é feito 

se não desta estreita margem.

De apeadeiro em apeadeiro

sem conservar os nomes na memória

azula-se o dia com o pressentimento do luar.

Os desencontros são a mestria dos contratempos

um desalinhamento estrutural 

que nos coloca a destempo

reféns de lugares diferentes

notários de diferentes figuras de estilo.

Pois é estilístico,

e garbosamente recomendável, 

alardear uma erudição que se não tem.

Assim como assim

a quase ninguém será dado saber da falácia

e em defesa do aparente erudito

há sempre a hipótese 

de o confundir com um gongorismo.

#2429

O cabresto cai sobre o dia

e da cordilheira

pressentem-se boas novas. 

14.6.22

#2428

Um segredo contado

não deixa de ser

um segredo.

13.6.22

Tutorial

Damos sede ao corpo

no fogo que amanhece

por dentro da boca ateada.

As mãos desenham um mapa

ouvem os poros suados 

– os poros não extintos

no diadema da combustão.

Dos sonhos

dizemos serem feéricos

imperturbáveis

à espera de serem chão emoliente

e da seiva em levitação

ajuramentada

no compasso da lava irrefreável

a espreitar entre a penumbra.

 

Não mentimos ao desejo.

 

Mantemos os corpos emaranhados

na dialética sem tratado.

Cuidamos de ser

em nome próprio

deuses que tutelam todos os demais deuses 

– pois é alquimia que se agiganta

no entrelaçar dos dedos

nos corpos que se trespassam

em verbos singulares.

 

No espaço entre nós

não cabem milímetros intrusos.

 

A manhã já foi promessa

e materializou-se

trono acima dos tronos

de onde reinamos 

no idioma que por nós fala 

– nas sílabas do sangue ebuliente.

#2427

Não é a memória

que namora com a amnésia

é a vergonha 

coada pelo presente.

12.6.22

Molhe

Molhe 

– para evitar

que as obrigações

fiquem à frente

das capacidades.

#2426

Tomar chá em pequeno

para depois chegar

a grande.

 

[Instruções de leitura: ler em tom devidamente cínico]

11.6.22

#2425

O arsenal

lúcido

investe contra 

os homens venais.

10.6.22

#2424

Ouço o sangue

depois da lava do desespero

e dou criação ao belo,

sem adjetivos.

 

[Concerto de Nick Cave and the Bad Seeds, NOS Primavera Sound, 09.06.22]

9.6.22

Embaixada

Sem mãos a medir

que a medida 

está pela hora da morte

e a morte recusa-se a entrar

em saldo.

 

O fundo do poço

não mostra o fundo

sem fundo de maneio

entre os meneios que se digitam

antes que o navio vá ao fundo.

 

A fala de que se fala

emudece e cuida da muda

de ser muda outrora fala.

#2423

Sou

este desajeitado pesar

a jura sem juro

um quarto

sem espelho retrovisor

um amanhã devolvido.

8.6.22

Contrato-programa

Des-sejamos:

altivos

burocráticos

piratas

impassíveis

calendários ambulantes

pioneses (meros)

rudimentares

planeadores de eólicas

pleonasmos pueris

povoadores do mundo

terylene

beócios (mesmo sem o saber)

mãos estreitas

paracetamol

barriga opada

sede olímpica

promotores da humanidade

(que topete!)

tutores

troca-tintas

algoritmo inconsciente

fala-barato (e silêncio-caro)

triunfadores narcísicos

absolutamente néscios

irritantes

(sobretudo de otimista lavra)

rebuçados de mentol

arquivistas (empoeirados)

e

banqueiros do tempo.

#2422

Amostra representativa:

benévolos que disfarçam 

o déspota que há em si

e déspotas

disfarçados de benévolos.

7.6.22

Fortificação

Casa forte

tatuada no dorso sem medo

amoedada na estirpe dos avoengos

tirada ao acaso

entre noviços entaramelados entre duas pontes. 

Forte a casa

a fortaleza de um labirinto

só combustível na ágil vontade desembaraçada. 

Casa

a forte

diadema arrematado 

na boca do avesso

a autenticidade de um jacarandá contemplativo. 

Forte casa

a fome de extinguir a fome

coreografia impassível 

ou apenas

o leve menear do dia vindouro

no cais amuralhado pelo nevoeiro demorado. 

#2421

Jogo

no fio da navalha

a latitude do deslimite.

6.6.22

Dever geral de silêncio

Na fila para pagar a gasolina

olhou de lado para o espelho

que mostrava a sua silhueta

em vez dos gelados adriçados.

Um silêncio insólito

incómodo

trespassava o estabelecimento.

Ninguém queria falar.

Sentiu a ponte levadiça

para a humanidade sem remédio.

Ele há tanta gente a querer falar

impedida por tiranetes a destempo

e naquele lugar

todos renunciaram ao dever de falar.

Como o copo está sempre meio vazio

percebeu:

quem não tem 

apurada coisa para pronunciar

que se remeta ao irremediável remendo

do silêncio.

#2420

Os nevoeiros teimosos

deitados 

sobre a cama do olhar

como gramática mutuária.

5.6.22

Salões das virtudes

Salta à corda

o vilão

traz disfarce apessoado

faz dele distinta pessoa

e as entorses à lei

escondidas numa funda cova

mesmo à espera de serem

sepultura. 

#2419

Absolvição pressentida

por conta

da memória futura.

4.6.22

#2418

Se temos

o Kilimanjaro

por que haveremos de querer

o Evereste?

3.6.22

#2417

Este tempo

é a paga em juros

do espelho do passado.

2.6.22

Desportos radicais

Do dédalo excruciante

arrastou o corpo 

ao pináculo da ausência. 

Servia o estado comatoso das coisas

como se fosse acólito cirúrgico

da decadência instalada. 

As nuvens limpavam o suor do rosto

e das gotas pendidas havia o orvalho;

os olhos desfocados rebatem as certezas

deixam os enigmáticos vedores

em coloquiais verbenas,

sem cinto de segurança. 

Há tempos

o amanhecer parecia estouvado

a claridade embotada a surfar no calendário

e as pessoas, 

como que absortas,

desaprendiam através das pautas rasgadas. 

Desse dia não houve memória. 

E nós,

artistas residuais

declaradamente intrépidos

(para não sermos reféns do sono)

metemos o arnês nas ideias

e acabamos presos na nossa pequenez.