20.7.22

Baliza aberta

Como o guarda-redes aterrorizado

à la Bukowski

as pessoas recuam até à omissão 

deixando a inércia como pedra tumular. 

E, todavia,

ninguém intui o penalty contra elas

ou sequer consta

que são o gordo imprestável,

apenas prestável para ir à baliza. 

 

Os olhos lacrimejam medo

transpiram medo

pintam quadros amorfos numa tela de medo. 

 

Os apoderados pelo medo

nada sabem de História

se não tomariam por seu 

o encargo que foi outrora 

dos seus antepassados. 

Talvez sejam apenas modestos,

dispensam a glória embebida na toponímia

em paga do legado

(que não deixam).

 

Do outro lado da mesa,

alguém inscreve a opinião em talha dourada:

et pur si muove

aferindo pelo musgo da tecnologia 

inventada a cada minuto que tem corda. 

 

(Ou pode ser apenas

para contrariar o pessimismo do vate.)

 

Oxalá esteja tudo às avessas

e por deserção do guarda-redes

(ausente da baliza)

os golos, 

de tão fáceis parecerem,

e escandalosamente falhados.  

#2466

As pedras arcaicas que falem

sem as mentiras dos Homens.

 

[Em Lecce, Itália]

19.7.22

#2465

A idade

é um lamento

assanhado a poemas

que suam a vida.

18.7.22

Anticorrosivo

A corrosão irrisória

pequena vírgula de ferrugem

e todo o pensamento decepado

por dentro da artéria centrípeta,

o seu foro estroncado sem vigilância.

 

Os cometas passavam 

à janela dos dedos.

 

Passavam, sem falas angustiadas,

que não havia freguesia para lamentações

 

(ali não havia adoradores dos National

ou dos Cigarettes After Sex).

 

A tinta acabada de passar estava fresca

e ninguém se lembrou de advertir os passeantes:

 

“atenção, tinta fresca”

 

talvez por preverem 

que uns estroinas noturnos

afocinhados num irredentismo lisérgico

treslessem a frase

trocassem o género 

e procurassem sorver a tinta do choco 

(deveras psicadélico). 

 

Não se falasse de silêncio

aos faladores em barda:

distintos desarrumadores de assuntos

saltarilhando de um para o outro

sem pontes a reparar os abismos:

 

nunca tinham sede.

 

Deles não se falava de corrosão:

eram os maratonistas da palavra

povoando-a com uso gongórico,

autênticos arrastadores de temas em elipse,

ou em eclipse

(não se chegava a compreender,

ao certo).

#2464

Das pontas soltas

as asas aninhadas no ocaso

a estrofe avinagrada. 

17.7.22

Afurada, depois do jantar

O dia desmaia

em suas esmeraldas nuvens

amnistiadas pelo acobreado pressentimento

do véu crepuscular.

Deposto ao nosso olhar

o estuário testemunha

no nosso regaço.

Dizemos:

foram os nossos dedos sacrílegos

os arquitetos deste sortilégio.

Os patamares do céu arqueiam-se

nos degraus ciciados pelas palavras.

que são ouro cultivado pelas nossas bocas.

E nos corpos

levamos um pedaço de maresia

que adia o crepúsculo. 

#2463

O desembaraço

devolve ao braço

a vontade sem baraço.

16.7.22

Desilusão estatística

Desilusão estatística:

as estrofes rivalizam com equações

num calendário venal de legibilidade.

É como se 

os números esgrimissem contra as palavras

e o eventual sangue derramado

fosse o húmus escondido sob a pele.

Mas não chega aos preparos

de uma desilusão:

nem palavras e números 

esperam nada reciprocamente

nem pode haver desilusão

se para começo 

nem uma ilusão fruiu.

Até ver

as palavras é que caíram 

na armadilha.

#2462

Se este 

for ermo a estar

seja de mim 

o apeadeiro presentâneo.

Escansão

Manias de aspirante a sommelier:

aprova na boca

as diferentes castas

que carregam o património da vida

como se as vidas demais

fossem aos taninos

explicar a gesta impossível.

15.7.22

#2461

[Re-dicionário]

 

A desinteligência

é a miragem

dos que passeiam

na passerelle da ignorância.

14.7.22

Formulário

Que veja nesta candeia

um pouco do suor tirado ao dia:

não sobrem sequer as cinzas

pois desta combustão que se inebria

sai o corpo sem cicatrizes. 

Fabrica-se a hora gentil

terrível preparo dos cães de atalaia

em vez de vertigem no auge da noite. 

Se soubessem 

de cor

as varandas que aformoseiam o lugar

não se prestavam à poesia ilustrada,

não se destruíam em voos rasantes

sobre a temível,

e, contudo, tentadora,

decadência. 

Os cigarros nunca fumados

servem de testemunha:

não se diga que não são credíveis

porque ainda estão intactos.

#2460

Não satisfeitos 

com a cor do caos

despenteamos 

as areias movediças.

13.7.22

A solidão

A solidão 

é um osso indigente

um gládio metido à força 

no olhar sem caução

o altivo convencimento 

dos estetas de si mesmo;

dizem:

uma farsa por dentro 

da doutrina do homem gregário

flor sedutora, mas afinal avidamente carnívora

o osso que não fratura

quando a fratura seria condição

da solidão enfim derrotada. 

Pois nem o maior dos misantropos 

concede

que a solidão seja solução.

#2459

Do lugar em hibernação

o exílio voluntário.

12.7.22

Rastilho

Não sei

quando é a posteridade

a não ser que ajuíza

a amputação de todos os pretéritos

deixados vagos

na decadência própria do que se resume

a um rastilho. 

Não se coíba

a maresia desarmadilhada

as feiras onde se amesquinham os eruditos

as obras ainda por fazer

os movimentos que não são perpétuos

a finitude dos corpos.

#2458

Se ao menos 

se pudesse atear

o acentuado arrefecimento diurno.

 

[Em dia de mais de 40º em quase todos os lugares]

Dissenso

A voz da madrugada

objeta o sonho derruído.

 

Não há matéria válida

jogada no avesso da vontade

e as cicatrizes da mudez

não passam de pele tatuada.

 

Não se diga da penumbra

o que se diz de vultos desassisados:

em cima do desenho pueril

sobressai o pesadelo itinerante,

a voz tumultuosa que agrava o medo

um porventura deslaçado murmúrio,

tardio.

 

A voz da madrugada

ainda silenciosa

pressente a tortura consecutiva.

 

Daí o silêncio estrutural.

11.7.22

#2457

Os muros

circunspetos

mobilizam-se 

contra a diligência.

10.7.22

Miscreants

You were the burglar

I was the warrior.

You were the criminal

I was the hero.

You hollowed out freedom

I was to arrange all wills.

You shall not harbour History

I will fence peace.

#2456

Tie-break,

para desteimar.

9.7.22

#2455

O rosto limão

deita-se ao mar

e coloniza a maresia.

8.7.22

Espionagem

Tabuleiro arcano

lábios de sangue

Mata-Hari imortal

em disfarces insuspeitos

atalaia 

por dentro das costuras alheias.

 

A diplomacia não fala esse idioma.

 

Para que existe

a diplomacia

se aos furúnculos espiões

se admite

na penumbra de uma caverna

o proibido

na cordata contratação

dos gentios?

#2454

Não capitules;

o lobo não é mau

e a alvorada não se tingiu

de medo.

7.7.22

#2453

Um mistério 

pode não ser um segredo

mas um segredo 

é um mistério.

6.7.22

O coldre vazio

A guerra da sabedoria

limpa do mapa a artilharia soez

e dos homens guerreiros

sobra a lisura da tinta-da-china.

 

Andasse o néctar de boca em boca

em genesíaca partilha dos pares

fosse a bondade mais do que vão conceito

e de bandeira em bandeira

os aviltantes arremedos de insídia

ficavam por conta dos apátridas:

 

os legítimos herdeiros

dos autênticos crimes 

contra a humanidade.

#2452

Um sexto sentido

nivelado

pela sétima maravilha.

5.7.22

#2451

As facas adormecidas

à mercê da bondade

esquecida.

4.7.22

Predicado

Esta é a porta clara

a excitação que se transforma 

em verbo.

Sem afazeres por perto

tudo se processa em vagar

o diletante manual 

que devolve a humana natureza

à primitiva forma.

#2450

No apuro das perdas

desconto

o sortilégio do amanhecer.