Dia de vistoria
dos petizes peticionários
pelo barbudo de vermelho
enfarpelado.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Sob tortura
o segredo
os vintes agora no selo
e a bandeira
ah! a bandeira
o peito às balas
se os heróis forem admitidos
a concurso
(não existe a certeza
sobre a pendência).
Sob tortura:
que os heróis
candidatam-se à imortalidade
lá,
de onde não conseguem sentir
o sabor da imortalidade
sem chão.
Quanto ao demais
um nome numa rua esconsa
ou numa nota de rodapé
em obscura dissertação de História
não são a paga devida
pelo mito mal disfarçado.
Agora
que a míngua de água
teve epílogo
já são autorizadas
as barbas de molho.
Como areia
que se torna aresta
no olhar,
o altar
que amanhã se atesta
como ceia.
Como fugitivo
que não resiste
à decadência,
a dissidência
que não desiste
como imperativo.
Como angústia
que adia o pressentimento
no oráculo,
o ósculo
que rejeita o sofrimento
e dita a simpatia.
Como fortaleza
que treina os nervos de aço
no cenário,
o bestiário
que germina o embaraço
e desfaz a fraqueza.
Escuto as palavras espancadas
como gritam no eivo da entorse
e vejo
como indiferentes e ínscios
prosseguem os fautores da tortura.
E escuto as palavras espancadas
e às vezes
sinto-me acossado
por não sermos credores
do idioma que tornamos contrafação.
Os gólgotas exercem o seu pesar
antes que balanças sem fiel
cobrem um preço exacerbado.
São desta igualha
os mercados que não recebem leis
e quem neles afocinhar
não descuide a atalaia permanente.
Antes fosse assim a tinta
mister que não combina com a modernidade
que é algo que nunca deixa de existir
quando o tempo se dá a conhecer.
Outrora
os homens
(que se notabilizavam enquanto cavalheiros)
usavam chapéu
gravata exceto ao deitar
sapatos devidamente ensebados
fato de três peças
ceroulas invernais
(que fazia um frio de rachar)
e só davam azo à luxúria
em visitas a prostíbulos licenciosos
(como se esse fosse o momento
para terem autonomia
das algemas que os aprisionavam
dentro de um estar meão).
Agora
só o Espada é que se mantém
cavalheiro
fiel aos espelhos arcanos
que teimam em verter sobre o presente
a mantilha de um passado
que deixou de ter validade.
Às vezes
nas poucas vezes
que me desensimesmo
e pratico
a modalidade olímpica do arrependimento
sinto-me refém de duas metades iguais:
uma de mim diz que devia ser conservador
e a outra moderadamente progressista
– socialista, em tributo ao modismo
que já mexicanizou este lugar.
Teimosamente impuro,
continuo um contínuo ludita
de extravagantes prescrições do mundo.
Sem remédio
e de alma que,
de tanto errante,
já perdeu as estribeiras da salvação.
Dizem
que o mundo é cão
e quem o diz
ignora
que um mundo cão
não é a representação
que querem impor ao mundo.
Que deste mundo se diga
que não é flor que se cheire
também é seta sem alvo certo
pois as flores não são repúdio para narizes
e às piores flores
pode apenas cair em libelo
o serem inodoras.
Diga-se do mundo,
em ativação desse desprazer congénito
dessa verberação
que ferve no sangue que se não curva,
que é limítrofe
a uma câmara de horrores
ao olhar cansado
que arremata as consoadas desimperativas
aos fingimentos tornados código de conduta
às carripanas
que ultrapassam os limites da decência
ao usar, como palavra maldita,
decência
quando a decência é o desviar dos olhos ingentes
diga-se
deste mundo que é a nossa coutada
que é indigente.
Proteste-se
contra as dores excruciantes
que fazem aderir à pele
os farsantes que deixam conceitos vagos
os lídimos apanhadores de cereja moral
mais a incorrigível mania de açambarcarem vidas outras
o leme viscoso
a que deitam mãos os medíocres entre os medíocres
o tanto húmus adulterado de normalidade,
em cinco palavras,
o mundo virado do avesso,
tão do avesso que o estuque não adere
por deixar de ser possível saber
o que é o avesso e o seu avesso
(sem contar
que o avesso do avesso pode não ser
o contrário do que se intui
na antítese do avesso).
Mas não se diga
em desabono do mundo-exílio
que tem parecenças com um cão
ou com flores imaginativamente fétidas
que nem os cães nem as flores
merecem ser portadores da metáfora,
nem o mundo é idílico
para se disfarçar atrás
de cães venéreos e de flores vadias.
Coloquialmente
o vento fala com os dentes todos
mostra as unhas propositadamente por tratar
como se ensinasse
nos ensinasse
que a descivilização é que compensa.
Insistentemente
gatos com cio arrancam um fio à noite
lutam entre eles
masculinamente marcando coutadas
mesmo sabendo
que não será em vão a espera.
Propositadamente
afiam-se as facas
que a peleja pugna pelo sangue
desejavelmente o dos outros
que o próprio é alérgico a agulhas
que é o mesmo que dizer
só admite a batalha
se a der como vencida à partida
(se não, tomem-no como contumaz).
Idilicamente
o corpo enamora-se nos socalcos da noite
abraça-se a um seu congénere
cuidando de saber diferente do seu o género
e no feixe de luzes que se poetiza
sente o epílogo como campo de batalha
mas redime-se dos pesares
e proclama
oxalá as batalhas fossem com estas armas,
como estas armas,
e o sangue tivesse nome
noutra seiva.
[Resposta a injustiças indocumentadas (52)]
(Na volta
o diabo é deus
em pessoa.)
Para não deixar oxidar
a relativização de tudo:
há as mentiras boas
(dizem: piedosas)
e as boas mentiras
(dizem: periciais).
Estas estranhas mezinhas
que se entranham
comezinhas
como se fossem
madrinhas mazinhas
a quem a mão puxa
para o lúbrico rodopio
e nós
sentidos inocentes
todavia imunes às falinhas
de quem não se espera que mansas sejam
nem espezinhas
apenas proclamações gentias
que não se fingem
nem no mais fundo das entranhas
nós
os não valentes
nem valetes por conta
que espreitam
no protesto dos diminutivos
oh! manigante peste
pior
do que as mais temidas pestes.
Sai dessa pele
no teu papel de sobrinho da esperança.
Pele
em vez de osso maduro
nem que seja em impuro esbracejar
a indulgência dos almocreves
a certeza dos infantes.
Sai da pele
que careces de corpo em nome próprio
esteta infinito
poeta antecipado
mecenas postergado
procurador dos muros sem pousio
assim achado numa clareira onde houve fogo
matriz promitente no denodo dos dias.
A pele que trazes tatuada
é candidata a estilhaço
mourejando nos flancos de um mar adormecido
depois do tumultuoso dia que o arruinou.
Sai da pele;
precisas de outra
e só não sabes que costuras serão suas
e a sua gramática sortilégio.
Não é de uma pele servil
o amancebado distrate em falta,
nas convulsões adiadas
que espreitam pela escotilha de um luar furtivo
luar eflúvio
que rima
com o flúmen onde teu olhar repousa.
Tua será uma pele subjacente;
ou uma pele herança
fruída num futuro sem data
à espera
sem a espera das contingências
como se num adro vazio
todas as estrofes levitassem
à espera de vez
à espera da declaração de autonomia.
Sai dessa pele
e encontra a Primavera
que se insinua nos poros suados
torna-te o trono dessa Primavera
e escreve
num papel feito de rosas
o teu nome a ouro
o teu nome
de ouro.
O areal
era testemunha do mar
que lhe arrancava pedaços do rosto
a meio da acrimoniosa maré.
No vento
dir-se-ia cavalgarem,
escondidos,
vultos empenhados em contrariar a sorte.
A coligação entre o mar e o vento
castigava o lugar
dando-se ao Inverno
dando a seu nome toda a propriedade.
Não se diga
que não houve vítimas:
pescadores desavisados
sacerdotes desempossados
escrivães de matéria baça
uns quantos senhores de aristocrática mentira
outros que passaram rente ao esbulho.
Nenhum diga
que não foi sujeito de aviso
e que as estrelas caiadas se deitaram
num musgo inválido
mesmo a preceito,
mesmo.