19.12.22

O mundo não é um cão (ou uma flor exilada)

Dizem

que o mundo é cão

e quem o diz

ignora

que um mundo cão

não é a representação 

que querem impor ao mundo. 

Que deste mundo se diga

que não é flor que se cheire

também é seta sem alvo certo

pois as flores não são repúdio para narizes

e às piores flores

pode apenas cair em libelo

o serem inodoras. 

Diga-se do mundo,

em ativação desse desprazer congénito

dessa verberação 

que ferve no sangue que se não curva,

que é limítrofe 

a uma câmara de horrores

ao olhar cansado 

que arremata as consoadas desimperativas

aos fingimentos tornados código de conduta

às carripanas 

que ultrapassam os limites da decência

ao usar, como palavra maldita,

decência

quando a decência é o desviar dos olhos ingentes

diga-se

deste mundo que é a nossa coutada

que é indigente.

Proteste-se

contra as dores excruciantes 

que fazem aderir à pele

os farsantes que deixam conceitos vagos

os lídimos apanhadores de cereja moral

mais a incorrigível mania de açambarcarem vidas outras

o leme viscoso 

a que deitam mãos os medíocres entre os medíocres

o tanto húmus adulterado de normalidade,

em cinco palavras, 

o mundo virado do avesso,

tão do avesso que o estuque não adere

por deixar de ser possível saber

o que é o avesso e o seu avesso

 

(sem contar

que o avesso do avesso pode não ser

o contrário do que se intui 

na antítese do avesso).

 

Mas não se diga

em desabono do mundo-exílio

que tem parecenças com um cão

ou com flores imaginativamente fétidas

que nem os cães nem as flores

merecem ser portadores da metáfora,

nem o mundo é idílico

para se disfarçar atrás 

de cães venéreos e de flores vadias. 

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