Satélite em si
uma máscara que cai
na omissão do pudor.
[Genealogia de uma crise política]
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Da boca
trapézios em murmúrios alpinistas
uma corda gasta quase a romper-se
mesmo sobre o precipício
faróis avinhados sem pontuação
olhos apontando aos jardins desarranjados
elipses encantatórias sob efeito de morangos
um punhado de lava decadente
a grandeza também decadente
e a saudade
suada
do silêncio.
Eram ralhetes a mais
e a menina suava como se a sua infância
soasse a infância outra vez
muito embora pressentisse
que da infância sobravam
só umas memórias que não queria
avivadas.
Podia ser que esses ralhetes fossem devidos
e ela teimasse numa loucura de espírito
que era como um retardador do tempo
– vinha mesmo a jeito
se já estivesse na idade madura
e o envelhecimento começasse a doer.
Não era o caso:
a menina ainda se considerava menina
e não era só porque a tratavam tantas vezes
por menina
vá-se lá saber se por deferência
ou apenas simpatia
ou por uma mal disfarçada misoginia
que se vestira do avesso,
tão farsante.
Os ralhetes eram sempre a mais,
ajuizou a menina
que não queria ser a vítima predileta dos ralhetes
e preferia que quem os pronuncia
se abstivesse da incumbência.
Também não é menos verdade
que os ralhetes não são encomendados
por a quem eles se destinam
e que há quem tenha o incómodo de os pronunciar,
empreitada que deve ser inominável
pois ela nunca emitiu um ralhete
e adivinha que seria tremendo incómodo fazê-lo.
O mal dos ralhetes
é de quem não tem razão.
Retém o rio com as mãos
espreita entre as veias
o rumor do vulcão.
Adia a noite
o simulacro do medo
entre montanhas retorcidas.
Cobre o rosto com o luar
dita para o areal
as angústias datadas.
Acorda do pesadelo fortuito
deixa-o fermentar na podridão
e agarra-te às páginas sem cinzas.
E diz ao amanhã
em segredo fechado por todas as chaves
que já o tratas por tu.
Melhor será não frequentar ginásios
para largas as costas não ficarem
com todo o peso da culpa
nelas arqueado.
A semântica
tem as costas largas.
Os figurões
dizem que dizem
e depois desdizem
para no terceiro episódio
desdizerem o que tinham desdito
sem que voltem ao estado primitivo
de quem disse o que disse.
E os figurões
alardeiam o enfado
de quem é posto à prova
como se fosse crime
e de lesa-majestade
remexer na podridão
por suas excelências segregada.
Como clausura do assunto
endossam a fatura
à semântica.
Pobre semântica.
Estou admirado:
ainda
nenhum tutor da superioridade moral
se cruzou com
cruzes,
canhoto.
Não sei se ouvem
as vozes que se convocam
para o que houve no futuro.
Por dentro dos bolsos
um terrível nada
feito de um amontoado de pessoas
a mais improvável véspera que se encena
no fingimento dos paradoxos.
Não sei
se de mim houve
bondade;
participo as fragilidades
que de mim deixam um retrato nu:
dessa nudez que é embaraço
procuro cortinas baças,
que não se veja para dentro.
Arranco às notícias
sob tortura (se preciso for)
as mentiras que contam.
Não preciso dessas mentiras
– ainda por cima
não são piedosas.
Não preciso
de um disfarce a cobrir o mundo.
E talvez também seja dispensável
a cortina baça
que esconde a minha nudez.
Reinvenção do dicionário:
um contratempo
vai contra o tempo
tem de ser
a medida do seu adiamento.
Erva daninha roçada pelos pés envidraçados
e areias movediças ultrapassadas ao entardecer
a vizinhança que fala em maiúsculas
e um leilão que merca arrependimentos
até
que sobra um nada só igualável
ao maior dos desertos.
Nisto
um escafandro
e a noção de exílio com nome de flor
que as gravatas às cornucópias
e um bando de calvos que mentem
até com os dentes que deixaram de ter
não tem maresia entre os pesadelos.
Um anão
dança no meio da sala
e ninguém deita o olhar
nos gigantes que também
dançam.
[Às vezes, a metáfora de geopolítica]
Feita a autópsia à lágrima corrompida
os peritos lavraram o auto:
era do sol pesaroso
derrotado
pela chuva fora da estação.
A fogueira crepita,
o único embaraço
ao silêncio.
O vinho voraz
deitado no sangue
a combustão empenha-se
nas palavras.
O frio fundo
foi deposto
e lá fora o luar
serve-se da solidão.
Oxalá tudo fosse
assim sereno
deserto
sem a vozearia infinita
sem os arautos do fingimento
apenas
um punhado de exilados do dia
que, como gatos vadios,
celebram a cidade como ermo lugar.
Dos vira-casacas
não se digam cobras e lagartos
que vestir o casaco do lado do forro
não é grande estética
e conforto.
Se desse mel houvesse escamas
seria como vírgulas a destempo
ou um eclipse a adiar a penumbra.
Se do forte não houvesse fala
seria como um voto sem antídoto
ou um peixe a recusar a água.
Se às cores se arrancasse a pele
seria como uma enseada insociável
ou um idioma sem tradução inventariada.
Se dos braços levitasse o silêncio
seria como baixar âncora longe do cais
ou uma espera interminável no avesso da luz.
Se o remédio fosse calar a voz
seria como aceitar a desliberdade
ou um punhal cravado no pensamento.
Se em estilhaços acabassem as prosápias
seria como aplaudir a armadilha das vésperas
ou a lotação com astronautas de contrafação.