14.5.23

O viveiro dos gongóricos

Mastigadas as palavras

um bolo alimentar indigesto:

se houvesse por pleitos

as batalhas navais feitas de provérbios

só os indigentes estariam à altura

de campeonatos.

Mas as mastigadas palavras

pareciam

frenéticos embaixadores

em estado lisérgico

nos seus jogos escondidos

inconfessáveis:

palavras mastigadas

eram cuspidas como perdigotos

e os anátemas da gaguez caíam

como água fervente a derreter o gelo:

uma mastigada,

dizia-se,

e não era loa tributada

aos escansões das palavras

assim amarrotadas e gongóricas.

#2781

Da meada 

que se doba 

sem estafa

o labirinto.

13.5.23

#2780

Foi com este petróleo

que ateaste a candeia

e soubeste ser o que eras 

antes de te saberes em estilhaços.

12.5.23

Ouvistão & achaguistão

De repente

uma plateia de eruditos

dos que tudo sabem

cientistas eméritos

na posse de oráculos prestigiantes

reduzindo catedráticos a aprendizes

transfigurando o verbo achar

que se acha confundido

com os achamentos como opinião.

Um incómodo

neste ouvistão

cheio de achistas.

#2779

Toda esta mostarda

os bancos de nevoeiro

e os inspetores de costumes

e não se discorre a sua serventia.

11.5.23

Pele noturna

Da centelha que esmaece

o crepitar que mantém acesa

a pele nutriente.

 

O mosto aviva-se

na pessoa da noite,

os sonhos não têm propriedade;

 

são rebeldes

têm vida própria

e nós, 

o seu acaso,

deixamo-nos ser

seus peões.

#2778

Is the right

or the left

my bare foot?

#2777

Afrouxa

a frouxa

e as invetivas

ficam órfãs.

10.5.23

Grainhas

Entardece

o olhar do dia

a pele ganha as rugas

seladas pelo crepúsculo. 

O pai conta historietas ao filho

espera que o trate infantilmente

agora que é infante;

o pai espera

quando for avó

e a decadência tomar conta

do calendário

ter a deferência do tratamento 

infantil:

dizem

que às cinzas somos devolvidos. 

O entardecer

é a longa véspera

da noite em que se investe

a decadência. 

Entre manhã e noite

(a noite que não acaba na manhã renovada)

a longa estrada que se atravessa

com os nomes tatuados

os lugares em inventário

as bocas suadas com o silêncio

a promessa de completude 

(possível).

#2776

Elevado o murmúrio a gramática

o silêncio não morava longe.

9.5.23

Exceções às regras

Tirando 

os tiranetes fracassados

não se tange esta terra pelo tratado

da tirania.

 

Tirando 

os truculentos tribunos

que tributam com o troar da sua tábua

os que se destronam da sua tutela

não se timoneira esta terra 

pelo túmulo troçado.

 

Tirando

os tergiversantes que titubeiam e titubeiam

não se tarda esta terra

em testas-de-ferro.

 

Tirando

os tirocínios que tabelam a tabuada do tempo

não tende esta terra

para catecúmenos de meia-tigela.

#2775

A chuva barrenta estende o dia

para o precipício do desânimo.

8.5.23

Oráculo

Ontem 

roubei do cofre

as farsas que hão de ser 

amanhã. 

E hoje

sei um pouco mais

do tanto que não gostei de ser

enquanto embaixador 

do tempo por haver. 

Amanhã

se ainda for a tempo

serei o mecenas das juras 

e do passo estreito em que se adiam

para memória futura

as mentiras desembainhadas 

ontem. 

Injustiças indocumentadas (105)

Da cepa torta

também se cativa

boa casta.

#2774

Datas

como véus

que enfeitiçam 

o sangue.

7.5.23

#2773

Já não havia bilhetes

o poço das angústias

estava sobredotado.

 

[Miragem]

6.5.23

#2772

As parcelas

todas somadas

conspiram a extorsão.

5.5.23

Injustiças indocumentadas (104)

De ginjeira 

– conheço-te de ginjeira,

advertiu com higiénica distância,

sem saber sequer

onde morava

a ginjeira.

#2771

Não te apoquentes.

Esse é 

um assunto cadente.

Injustiças indocumentadas (103)

E para quem 

não gosta de mel

pode ser lua 

(eu sei lá)

de coentros.

Injustiças indocumentadas (102)

Todos temos

onde cair

mortos.

#2770

Não ateies as labaredas

se não queres que o fogo 

seja teu combustível.

4.5.23

Da intransigência

O eco do luar

sem as arestas 

do olhar freado

combina o bramido

do verbo crepuscular.

Não são as matilhas

errantes no conduto da noite

autoras dos males sendeiros:

são os pés dos meãos

transbordando do seu vagar

agigantados

farsas que se entranham

nas veias açambarcadas

viperinas desde então.

#2769

Corres atrás

das palavras furtivas,

o teu esgrima pessoal.

3.5.23

Manifesto contra a farsa

Como se o hálito do coiote amanhecesse

por dentro dos ossos 

e até o nevoeiro enraizado se calasse

ao pressentir a trovoada que se hasteia,

a suspensão do dia adiada até data conveniente. 

Se houvesse um feixe de sílabas escondidas

o coiote acordado toda a noite

de atalaia

a fingir o sono 

dos que suas vítimas não querem ser

fugindo dos punhais alardeados pelo coiote

enquanto a maré inteira não se torna

apenas sobrevivência. 

E fogem

do dia

dos dias consecutivos

por todos serem iguais

da fala

da imodéstia

das juras atiradas sobre o passado

de um lugar que seja pertença

de um lugar qualquer

em que consigam ser outro eu

à falta de saberem estar vestidos

nos deslimites em que se terçam. 

Por não ser do coiote

essa culpa 

tatuada. 

#2768

Satélite em si

uma máscara que cai

na omissão do pudor.

 

[Genealogia de uma crise política]

2.5.23

Fogo cruzado

Da boca

trapézios em murmúrios alpinistas

uma corda gasta quase a romper-se

mesmo sobre o precipício

faróis avinhados sem pontuação

olhos apontando aos jardins desarranjados

elipses encantatórias sob efeito de morangos

um punhado de lava decadente

a grandeza também decadente

e a saudade

suada

do silêncio.

#2767

Não teve tempo

para ser jovem

e luta 

com a obstinação das suas forças

para não ser velho.

1.5.23

Ralhetes

Eram ralhetes a mais

e a menina suava como se a sua infância

soasse a infância outra vez

muito embora pressentisse 

que da infância sobravam 

só umas memórias que não queria

avivadas.

Podia ser que esses ralhetes fossem devidos

e ela teimasse numa loucura de espírito

que era como um retardador do tempo 

– vinha mesmo a jeito

se já estivesse na idade madura

e o envelhecimento começasse a doer.

Não era o caso:

a menina ainda se considerava menina

e não era só porque a tratavam tantas vezes

por menina

vá-se lá saber se por deferência

ou apenas simpatia

ou por uma mal disfarçada misoginia

que se vestira do avesso,

tão farsante.

Os ralhetes eram sempre a mais,

ajuizou a menina

que não queria ser a vítima predileta dos ralhetes

e preferia que quem os pronuncia 

se abstivesse da incumbência.

Também não é menos verdade

que os ralhetes não são encomendados

por a quem eles se destinam

e que há quem tenha o incómodo de os pronunciar,

empreitada que deve ser inominável

pois ela nunca emitiu um ralhete

e adivinha que seria tremendo incómodo fazê-lo.

O mal dos ralhetes

é de quem não tem razão. 

#2766

O fio da indiferença,

teia que se emaranha

na carne que ralha.