Os verbos rimavam com
depostos todos os sem
que dantes eram embaraço.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
A flor bela
devora
a flor bala.
Antes fosse
a flor bola
lamenta a flora bala
quase a cair na boca
da flor bela.
Tudo
sob os auspícios
da flor bula.
Atravessam as cores
atravessam os vulcões
com os nomes ensandecidos
com os olhos assestados no futuro.
De um nome não se diga
indiferença.
De um nome
sejam rasurados os poros
em manhãs ausentes,
a diligência dos arrependidos.
De um nome
fugido à escravatura
urdindo os verbos crepusculares
enquanto se amacia o verbo do porvir.
Dos nomes se digam
bem alto
as clepsidras luminosas
o verbo oponente num horizonte sem freios
os nomes
inteiros ou pela fração que calhar
em sucessivas marés sem algemas
os nomes que chamam por nomes
antes que sobre eles caia
o silêncio.
Ascendo ao supor venal:
transijo com os rumores,
a flácida matéria
dos que deixaram de ser
vitais,
convoco os leilões das almas
as almas em pessoa
ou por procuração
(também serve).
Amarro os braços
a uma camisa-de-forças
a jaula de onde não apetece fugir
mesmo que exposto como animal
e de mim se diga
que foi merecido.
Nunca tive medo da humilhação.
Nunca soube ser das dores da insídia.
Ouve-se o vento martírio
o ciciar das flores que crescem
um vírgula dois centímetros por hectare
o ritmo compassado da pele hirsuta
e sabemos
sem termos sido ensinados
que é como se um tsunami
estivesse a bater à porta
e nós,
impassíveis,
à espera
só à espera.
Aprende
que eu não duro
para sempre;
aprende
que de mais duro crânio
não há paradeiro;
e aprende
que a vaidade
extingue-se
como a vida.
No estuário da voz
as sílabas cortam o vento
e acertam a nomenclatura
desafiando a orfandade.
Não será nesta voz
que se aninha o protesto:
o silêncio não tem gramática
e ainda que sejam viáveis
os apóstatas da cacofonia
até as palavras sem fundo
se sobrepõem ao silêncio:
o silêncio
é o pressentimento da morte.
Se de bronze são
pífias são as leis.
[Continuação de “Injustiças indocumentadas (114)”]
Se há leis de bronze
por que não as há
de prata ou de ouro?
[Continuação de “Injustiças indocumentadas (114)”]
Escolha uma das seguintes
para a personalidade do momento
burlesco
grotesco
picaresco
sem justificar a escolha.
Um peregrino
(parecia um peregrino,
ou talvez fosse um mendigo)
avança devagar
apoiado na estrada.
Arruma com os pés as flores
deixadas em bandeja no chão
como se o chão tivesse suplicado
um tapete aromático.
O peregrino
ajeita os andrajos
(seria um mendigo?)
e murmura
com ar de poucos amigos
o que ninguém consegue retirar
ao silêncio.
O peregrino
participa a solidão:
há quanto tempo
não fala com pessoas?
e esta interrogação
arbitrária como a suposição
só é válida para quem a formula.
Ninguém pode dizer ao certo
o que vai por dentro do peregrino
(e também não por dentro do mendigo).
A fivela à cintura descaiu
e o peregrino acerta-a:
não quer ficar
com as calças na mão,
o mendigo
(ou será o peregrino?).
Virada a pele do avesso
um desassisado vulcão
de frente para o precipício
sem rastilhos por atear
sem outras partidas
a servir de cais.
Do avesso
em vez de avulso
a lareira dentro da boca
e a incandescente tocha à espera de erupção
domando o sal que vem com a manhã.
Avesso me encontro
às tágides como trovoadas
inspiradoras que inspiram um avo
antes que sejam fermentadas
pelo efémero que não entra no dicionário.
Ao vaso centrípeto
onde o sangue se deslaça
e tudo deixa de ser ontem
a pele avessada deixa de ser
em bordões de carne sem prescrição
a teimosia que derrota os mastins sem rédea.
E de volta do avesso
a pele desembaciada golpeia as uvas certeiras
antes que as abóbadas do apocalipse
sejam bilhete postal
antes
que as rodas desimpedidas sejam travejadas
no provável logro dos medos
na fatiada vida servida em fascículos
contra o princípio geral do bocejo
e a alardeada sinfonia
dos que vão de braços em baixo.
Para saber da pele
é preciso levá-la ao avesso
extingui-la das viciosas coleções dos dias
macerá-la no vinho frágil
que a torna a mais vívida fortificação.
O alvoroço armadilha o convés
onde distraídas se congeminam as marés.
As nuvens que desenham o céu
participam na quimera dos contumazes:
se os dedos chegassem às nuvens
conseguiam tatuá-las.
No fundo poucos são assim
escondidos no seu labirinto
só eles conhecedores
das meadas em que se entretecem
sem ambições de desanonimato.
O alvoroço
é o hino em que se amparam
ciosos de serem maiores
do que o espelho que os retrata
na improfícua demência de julgarem
que as suas vidas
são um teatro com audiência.