O sol de julho
é como as fornalhas
onde se funde o aço:
se houvesse metáfora do inferno
o Verão que nos tortura
seria a metáfora entre todas.
(Não se confirma
que inferno
rima com Inverno.)
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
O sol de julho
é como as fornalhas
onde se funde o aço:
se houvesse metáfora do inferno
o Verão que nos tortura
seria a metáfora entre todas.
(Não se confirma
que inferno
rima com Inverno.)
As facas em descanso
deixam a pele na letargia
os acasos justapostos pelo ocaso da memória
e nada se credita à devoção
o amor tem os braços de um polvo
para não fugir nos interstícios do sono.
Esta é a matéria válida
o desassombro
das vozes que murmuram o paladar da alma
desarrumando os conspiradores
os que erguem
insatisfatoriamente
barragens elefantes brancos
e mesmo assim o caudal abraça-se
ao rio restante.
Tatuada a astúcia em forma de verbo
o corpo é um santuário à prova de derrotas
sem haver
quem o consiga desfeitear.
Podem ser medonhas as ondas
temível a lava de todos os vulcões por junto
podem todos os olhares açambarcar a tirania
deixando-a (ó pobretanas) refém da fragilidade
podem os gongóricos ser reduzidos a migalhas
e os pederastas da estultícia desfilar
na passerelle
ostentando a sua indigência
podem os deuses,
adormecidos,
esquecer-se da bondade
que os padrinhos seculares
descombinam do olvido
derruídos pelo esplendoroso labirinto
onde se terçam as solenes proclamações
o desejo que torna árida a aridez
e devolve ao avesso à fazenda legítima.
Os cabelos
cavalgam o dorso das ondas
dir-se-ia
amaciam o horizonte atrás delas deitado
como se o outro lado do mar
estivesse à distância de duas braçadas.
Que ninguém proteste a impossibilidade.
O seu antídoto
é a vontade arrematada
contra a indulgência
que se disfarça de medo.
A saliva foge das cicatrizes
o remorso incendeia-se na manhã
os sonhos são o prolongamento do medo
as sílabas obedecem ao quociente
para que nada fique
sem raiz quadrada.
O pelourinho
foi demitido da praça
os inquisidores estão nus e ao deus-dará
e já nem as viúvas lamentam oxalás.
Honestos
os chás orientais com rótulo disfarçado
e desonestos
os vinhos do Porto made in África do Sul.
Os reclusos estão viciados na biblioteca
e os catedráticos delinquem às escondidas.
E tudo, ou quase,
virado do avesso
como se do avesso
as coisas perdessem o avesso
e se tornassem
coisas.
Vou às portas de um país basco
sem medo do ricochete
das balsas de exilados
com fome de colinas adelgaçadas
pária de um idioma sem paradeiro
das fronteiras que acabam depois
nas manhãs condensadas
que se acastelam
nas costas do mar.
Que sabemos
da árvore noturna
dos humores que fabricam o orvalho
da matéria-prima de que é feito o sangue
dos inviáveis dias
que se arrumam no dicionário?
Toda a água contida no rio
desfaz-se num mar totalitário
e digo
que não há maior gesto democrático.
Se estamos à mercê da contingência
se só sabemos que do outro lado da página
medra a luz crepuscular
de que serve sermos arquitetos do porvir
se depois acabamos engenheiros
a fazer o levantamento dos destroços
e repor o que do passado puder ser salvo?
Não aprendemos com o futuro
e ficamos à espera da fala do passado.
É essa a nossa tragédia comum.
Um lampejo de vozes exaustas
a pele que se gasta com o reviver
e o sangue em banho-maria
sempre à espera
do próximo apeadeiro.
De cada rua demandada
a granada desaprovada
que se amotina na contramão
de um corpo que precisa de corrimão.
Deste espólio que se agiganta
não há vivalma que se espanta
caem as mãos como um machado
no estio nunca atrasado.
À água funda o oráculo resgatado
fundeia o espectro destinado
o estuário tardio e sem bainhas
só deixa emergir as entrelinhas.
No ocaso a jura pertence
o lugar deixado ao luar incense
e os poros de matéria combustível
escondem a força invisível.
As estrofes que atapetam o calendário
contrariam o provável mortuário
cortando a eito a temível passadeira
para no miradouro ser devolvida a canseira.
O jacarandá incendeia a alma promissora
e avaliza a luz encantadora
a fala junta-se ao orgulho matinal
num diadema seminal.
Ouvem-se as vinhas
o aroma que prometem
enquanto esperam nos socalcos
pelo tempo que vinga.
Os artesãos não conspiram a solidão
que o vinho ajuramentado precisa de colo
precisa de mãos sábias
que o despoja de ardis
e matéria pretensiosa.
Logo agora
que a empreitada ganhou peso
e a desdieta é da culpa
do terroir
(por já terem,
talvez,
sido extintos
os termos em português).
Adivinhei o estado comatoso
à volta do adro voejavam abutres disfarçados
e o oriente devolvia o sol
ainda infante
ainda assembleia dos desejos.
As ruas apinhadas de silêncio
fingiam as vozes suadas
fingiam
que sabiam ver debaixo das pálpebras
e as pedras guturais que segredavam os rumores
desatendiam as preces embaixadoras.
Os corpos
eram atirados para a falésia
mas voavam
tão leves
que se acreditava que era intencional.
Os gatos lutavam pelo lugar
houvesse uma gata que fosse para disputar
e antes que os preclaros se abespinhem
diga-se
que os gatos não leem os gurus de amanhã
nem vão às manifestações participativas.
(Porventura
propor-se-á
numa bem-aventura assembleia
a destituição da natureza
ou a sindicalização
das gatas.)
O cio dos gatos é indiferente
e os varões pendidos na madurez invejam
tão profilático desejo
toda a carnalidade sem o véu dos costumes.
A usura
a maldita usura
levar-nos-á à decadência
e depois
à extinção.
(A menos que as assembleias participativas
se substituam à usura
e, salvíficas,
decretem que tudo o que se opõe
à desmaterialização
está condenado à proibição.)
A encenação não conta,
adverte o pai na direção da filha
e ela
insistindo no descomportamento
mostra a língua e duas caretas
às meretrizes que se mercam
na rua feita montra.
Ah, se ao menos o mundo não tivesse arestas
e as chaves não fossem segredos
as bocas diziam os nomes ao acaso
e já ninguém participava no medo;
se as cortinas se mantivessem subidas
e já não houvesse clareiras por recusar
as fogueiras não se extinguiam
nem à força de chuvas estrénuas.
Esgotado o tempo
já não se sabe se ele se gastou
ou se atirou contra
os que dele são párias.
Rasgo
a fuselagem dos dias bastantes
as lágrimas que são refúgio das árvores
mas não consigo rasgar
os diamantes que são a safra do futuro.
Deste dar à corda,
a roda dentada que porfia
nos dias seguidos
a visionária sabedoria de viver.
Os tribunais andam distraídos
e as ruas incendeiam-se
com as vozes cansadas
em motins de despensamento.
As manhãs são como úberes.
As vozes ainda em murmúrio
com medo de se revelarem
estremunhadas
expiam os pressentimentos
cifrados nos pesadelos.
De cada vez que chove
deito as mãos para sentir as gotas
acolho a chuva no cabelo desprotegido
e vejo
em cada gota que entardece em meu rosto
um oráculo que se escreve a tinta-da-china.
De cada vez que chove
sou eu
essa precipitação ousada
vertida sobre o adro sem curadoria.