12.7.23

Late harvest

O sol de julho

é como as fornalhas

onde se funde o aço:

se houvesse metáfora do inferno

o Verão que nos tortura

seria a metáfora entre todas. 

 

(Não se confirma

que inferno 

rima com Inverno.)

#2843

Croissant.

Croix sante.

#2842

Como coiotes

de atalaia

à espera 

da próxima presa.

11.7.23

Manual da impossibilidade

As facas em descanso

deixam a pele na letargia

os acasos justapostos pelo ocaso da memória

e nada se credita à devoção

o amor tem os braços de um polvo

para não fugir nos interstícios do sono. 

 

Esta é a matéria válida

o desassombro 

das vozes que murmuram o paladar da alma

desarrumando os conspiradores

os que erguem

insatisfatoriamente

barragens elefantes brancos

e mesmo assim o caudal abraça-se 

ao rio restante. 

Tatuada a astúcia em forma de verbo

o corpo é um santuário à prova de derrotas

sem haver 

quem o consiga desfeitear. 

 

Podem ser medonhas as ondas

temível a lava de todos os vulcões por junto

podem todos os olhares açambarcar a tirania

deixando-a (ó pobretanas) refém da fragilidade

podem os gongóricos ser reduzidos a migalhas

e os pederastas da estultícia desfilar 

na passerelle

ostentando a sua indigência

podem os deuses, 

adormecidos, 

esquecer-se da bondade

que os padrinhos seculares 

descombinam do olvido

derruídos pelo esplendoroso labirinto

onde se terçam as solenes proclamações

o desejo que torna árida a aridez

e devolve ao avesso à fazenda legítima. 

Os cabelos 

cavalgam o dorso das ondas

dir-se-ia

amaciam o horizonte atrás delas deitado

como se o outro lado do mar

estivesse à distância de duas braçadas. 

Que ninguém proteste a impossibilidade. 

 

O seu antídoto

é a vontade arrematada

contra a indulgência 

que se disfarça de medo.

 

#2841

Perdidos e achados:

achados os perdidos

estamos

perdidos nos achados.

#2840

Não dirás

indiscutível

se não quiseres ser 

verdugo da tolerância.

10.7.23

Porto forte

A saliva foge das cicatrizes

o remorso incendeia-se na manhã

os sonhos são o prolongamento do medo

as sílabas obedecem ao quociente

para que nada fique 

sem raiz quadrada.

 

O pelourinho

foi demitido da praça

os inquisidores estão nus e ao deus-dará

e já nem as viúvas lamentam oxalás.

 

Honestos 

os chás orientais com rótulo disfarçado

e desonestos

os vinhos do Porto made in África do Sul.

 

Os reclusos estão viciados na biblioteca

e os catedráticos delinquem às escondidas.

 

E tudo, ou quase,

virado do avesso

como se do avesso

as coisas perdessem o avesso

e se tornassem

coisas.

Injustiças indocumentadas (133)

Por acaso

por ocaso.

#2839

O nome de uma flor

uma qualquer

em vez de heróis forjados

em livros de História.

9.7.23

#2838

Não é em vão

que vão te tornas,

a escada da decadência

é o vau inadiável.

Injustiças indocumentadas (132)

Portugal

(não é)

dos pequeninos.

8.7.23

#2837

Era a oliveira falhada

os ramos ressequidos de fora

mas era uma oliveira.

7.7.23

Cem barreiras

Vou às portas de um país basco

sem medo do ricochete 

das balsas de exilados

com fome de colinas adelgaçadas

pária de um idioma sem paradeiro

das fronteiras que acabam depois

nas manhãs condensadas

que se acastelam

nas costas do mar.

Injustiças indocumentadas (131)

É quanto barata 

– quão de terceira classe –

a carne para canhão?

#2836

Dizer adeus

é encomendar alguém 

a deus?

6.7.23

Confissão

Que sabemos 

da árvore noturna

dos humores que fabricam o orvalho

da matéria-prima de que é feito o sangue

dos inviáveis dias 

que se arrumam no dicionário?

 

Toda a água contida no rio

desfaz-se num mar totalitário

e digo 

que não há maior gesto democrático. 

 

Se estamos à mercê da contingência

se só sabemos que do outro lado da página

medra a luz crepuscular 

de que serve sermos arquitetos do porvir

se depois acabamos engenheiros

a fazer o levantamento dos destroços

e repor o que do passado puder ser salvo?

 

Não aprendemos com o futuro

e ficamos à espera da fala do passado. 

É essa a nossa tragédia comum. 

 

Um lampejo de vozes exaustas

a pele que se gasta com o reviver

e o sangue em banho-maria

sempre à espera 

do próximo apeadeiro.

Injustiças indocumentadas (130)

Uma ação de formação,

ou deformação.

Injustiças indocumentadas (129)

Um pé de vento

quantos dedos tem?

#2835

As ruas arrumavam a solidão

sabiam que havia um dia

consecutivo.

5.7.23

A oficina do exilado

De cada rua demandada

a granada desaprovada

que se amotina na contramão

de um corpo que precisa de corrimão. 

 

Deste espólio que se agiganta

não há vivalma que se espanta

caem as mãos como um machado

no estio nunca atrasado. 

 

À água funda o oráculo resgatado

fundeia o espectro destinado 

o estuário tardio e sem bainhas

só deixa emergir as entrelinhas. 

 

No ocaso a jura pertence

o lugar deixado ao luar incense 

e os poros de matéria combustível

escondem a força invisível. 

 

As estrofes que atapetam o calendário

contrariam o provável mortuário

cortando a eito a temível passadeira

para no miradouro ser devolvida a canseira. 

 

O jacarandá incendeia a alma promissora

e avaliza a luz encantadora

a fala junta-se ao orgulho matinal

num diadema seminal.

#2834

Joga-se o jogo do fingimento

a fugir de todo este

fingir.

4.7.23

Vinificação

Ouvem-se as vinhas

o aroma que prometem

enquanto esperam nos socalcos

pelo tempo que vinga.

Os artesãos não conspiram a solidão

que o vinho ajuramentado precisa de colo

precisa de mãos sábias 

que o despoja de ardis 

e matéria pretensiosa.

Logo agora

que a empreitada ganhou peso

e a desdieta é da culpa

do terroir

 

(por já terem, 

talvez, 

sido extintos

os termos em português).

#2833

De que sangue

é feita a noite,

de que sangue

se amestram 

os sonhos?

3.7.23

Mecenato (em proveito próprio)

Adivinhei o estado comatoso

à volta do adro voejavam abutres disfarçados

e o oriente devolvia o sol

ainda infante

ainda assembleia dos desejos.

As ruas apinhadas de silêncio

fingiam as vozes suadas

fingiam

que sabiam ver debaixo das pálpebras

e as pedras guturais que segredavam os rumores

desatendiam as preces embaixadoras.

 

Os corpos 

eram atirados para a falésia

mas voavam

tão leves

que se acreditava que era intencional.

 

Os gatos lutavam pelo lugar

houvesse uma gata que fosse para disputar

e antes que os preclaros se abespinhem

diga-se 

que os gatos não leem os gurus de amanhã

nem vão às manifestações participativas.

 

(Porventura

propor-se-á

numa bem-aventura assembleia

a destituição da natureza

ou a sindicalização 

das gatas.)

 

O cio dos gatos é indiferente

e os varões pendidos na madurez invejam

tão profilático desejo

toda a carnalidade sem o véu dos costumes.

A usura

a maldita usura

levar-nos-á à decadência

e depois

à extinção.

 

(A menos que as assembleias participativas

se substituam à usura

e, salvíficas,

decretem que tudo o que se opõe 

à desmaterialização

está condenado à proibição.)

 

A encenação não conta,

adverte o pai na direção da filha

e ela

insistindo no descomportamento

mostra a língua e duas caretas

às meretrizes que se mercam 

na rua feita montra.

 

Ah, se ao menos o mundo não tivesse arestas

e as chaves não fossem segredos

as bocas diziam os nomes ao acaso

e já ninguém participava no medo;

se as cortinas se mantivessem subidas

e já não houvesse clareiras por recusar

as fogueiras não se extinguiam

nem à força de chuvas estrénuas.

 

Esgotado o tempo 

já não se sabe se ele se gastou

ou se atirou contra 

os que dele são párias.

Injustiças indocumentadas (128)

A coça

que coça.

Injustiças indocumentadas (127)

O amigo é da onça

mas 

a onça não é do amigo.

#2832

Privilégio extravagante

é ser testemunha 

da erupção do sol.

2.7.23

#2831

Rasgo

a fuselagem dos dias bastantes

as lágrimas que são refúgio das árvores

mas não consigo rasgar

os diamantes que são a safra do futuro.

Vassalagem

Deste dar à corda,

a roda dentada que porfia

nos dias seguidos

a visionária sabedoria de viver. 

Os tribunais andam distraídos

e as ruas incendeiam-se 

com as vozes cansadas

em motins de despensamento. 

As manhãs são como úberes.

As vozes ainda em murmúrio

com medo de se revelarem

estremunhadas

expiam os pressentimentos 

cifrados nos pesadelos. 

De cada vez que chove

deito as mãos para sentir as gotas

acolho a chuva no cabelo desprotegido

e vejo

em cada gota que entardece em meu rosto

um oráculo que se escreve a tinta-da-china. 

De cada vez que chove

sou eu

essa precipitação ousada

vertida sobre o adro sem curadoria. 

1.7.23

#2830

Não esperei pelo passado,

o nome fez-se à falésia

no luxo vertical da ousadia.